Shalom em 2016: um gesto empático dos homens de boa vontade

Shalom é a palavra hebraica que define a completude da paz (cf. Lc 1,40). Paz consigo é o repouso da própria alma em si mesma. Assim, entretanto, a paz é fruto da justiça (cf. Lc 18,2-8). A justiça é fruto da equidade e a equidade, por sua vez, é fruto da fraternidade. Se o outro é meu irmão, então dou-lhe minha mão. Contudo, a fraternidade não pode acontecer sem um reconhecimento do alter ego como uma possiblidade para eu ser. Só poderei me realizar se conviver e coexistir com os outros (cf.WOJTYLA, 1982, p.306). Ver e mover-se de compaixão é mais que realizar um ato de justiça, é uma atitude vital (cf. Lc 10,33). O homem é o único ser vivo que precisa sempre do outro ser vivo para dar e receber. Chamamos esse movimento de um “recíproco para”, ou seja, amor. “Deus é amor” (1Jo 4,8).

Se Deus nos criou, então é lógico que nosso ser repousa e se desenvolve no amor. Contudo, só amamos na mediação. Ninguém ama a si mesmo se não tiver um amado. E ainda, segundo Edith Stein, citando Agostinho, “forma parte do amor um amante, um amado e, enfim, o amor mesmo” (STEIN, 2013, p.461-462). A Trindade se abre ininterruptamente, porque ama. Só o amor possui a energia da plenitude do ser pessoal. É a relação que revela a pessoa tanto humana quanto divina. A relação interpessoal é o conceito chave para entender a Revelação. Deus se comunica no amor. Quem ama respeita porque o amor é relação interpessoal. Isso exige reconhecimento da alteridade. Sou eu mesmo só quando mantenho contato empático. Por isso, Edith Stein afirma ser a intropatia, (=sentir dentro de), uma vivência sui generis porque está na constituição do ser humano. Aqui ela colhe a abertura a participação na experiência alheia podendo gerar comunidade. De fato, toda comunidade tem, em sua raiz, a vivência empática. O mundo deverá, assim, ser uma comunidade humana.  

Shalom enquanto fruto da empatia é a palavra chave para o ano 2016. Porque se participo da vida do outro vejo-o e movo-o de compaixão. Não podemos ser cristãos sem com-paixão, isto é, sentir com o outro. Não podemos admitir, na Igreja, um ágape sem eros, ou seja, um amor sem afetividade, sensibilidade. Não um sentir sentimental, mas fundamental, ou seja, que me leve a uma atitude conscienciosa que transcenda a sim-patia ou ante-patia. Dizer sim com consciência é uma possibilidade ética da vivência empática ante a dor alheia. Isso é o cristianismo. O que sinto ao ver as crianças refugiadas da Síria?

O evangelista Lucas, com isso, resume toda a vida de Jesus, e nossa, no capítulo 15 de seu Evangelho. A ovelha perdida (cf. v.3-7), a moeda perdida (cf. v.8-10), o Pai misericordioso com o filho mais novo e o filho mais velho (cf. v.11-32). Elas formam o centro da vida cristã. Veja que há uma integridade perdida e reencontrada nos números cem, dez e dois ou três. São números teológicos e psicológicos que dizem da plenitude da pessoa humana e suas relações. A alegria emana do reencontro com a ovelha (aos cem), com a moeda (as dez) e com Pai e os filhos (aos três). Essas parábolas têm riquezas incalculáveis. Sempre encontramos elementos novos. Pois, ora somos a ovelha perdida, a moeda e o filho, ora somos aqueles que procura e espera. Na fé a espera é ativa. Por isso, uma paz não pode ser fruto da pax romana, ou seja, resultado de coesão, mas de um gentil diálogo intropático, ou interpessoal. Nesse sentido, o que faz a ONU com respeito a paz mundial? É preciso uma postura séria e eficaz. Não podemos aceitar hipocrisia, nesse sentido. Pois, não se tem Shalom sem respeito e reconhecimento da dignidade inalienável de todos os homens.

Em 2016 não podemos tolerar mais monólogos entre países que se acham donos da verdade e da paz. Quem quer paz tem que promovê-la entre si e fora de si. A realidade, saibamos, é feita sobre dois movimentos cujo terceiro elemento corresponde a abertura fecunda dos dois.  Podemos chamar isso de dialética, se quisermos. Mas, é uma dialética contingente, relativa. Não relativista. Mas, relativa a realidade do diferente. Não é absoluta porque se fosse assim teríamos supremacia sobre todos. Unidade, com isso, não é eliminação de partes, mas comunhão.  

Segue daí que toda relação é dual, em princípio, que exige abertura, em seguida, como completude dialogal. Vejamos: o terceiro não pode ser excluído! Dessa maneira, se Deus é amor só pode ser três. Porque o amor exclui fechamento e implica abertura. Percebamos nas relações entre casais. O filho abre a relação para formar communio personarum. Os dois já não pensam em satisfazerem seus desejos, mas os unem para a realização do filho.

Por que tal analogia? Porque não se pode ter paz a homens egoístas, a países “fechados”. Todos os homens são filhos de Deus. Somos irmãos. A paz é fruto de homens de boa vontade (cf.Lc 2,14). A vontade é a “razão comunicativa”, e não razão instrumental que Jurgen Habermas tanto fala. A boa remete a beleza, a liberdade da vontade optada por uma atitude ética e cristã. Ver, mover-se de compaixão (cf.Lc 10,33) é a única saída a um amor concreto ao nível universal que ajude o caído. Tal ato enriquece tanto o ferido quanto o Samaritano. Lucas 10,33 e 15,1-32 resumem toda nossa teoria e prática caritativa.

As religiões, por sua vez, devem promover a paz mundial. Porque precisamos ser sal e luz (cf. Mt 5,13-14). O problema é que assistimos manifestações religiosas alienantes, isto é, ritualistas que celebram uma vida esquizofrênica. Nesse viés, fé e vida não se implicam. Stein nos diz que há ciência no mistério da cruz. A fé não é irracional. Caso seja, não é fé, mas neurose ou loucura.

A paz completa não pode ser isolada, mas integrada. O problema da paz mundial requer, portanto, paz individual, interpessoal, comunitária, social e internacional. Não posso ficar seguro atrás das grades de um condomínio vigiado. Nunca teremos paz, saúde, educação e riqueza sozinhos. E nem assistindo 16 minutos de fogos na praia de Copacabana, por exemplo. Nesse caso é preciso muita “sorte” para não precisar dos hospitais. Claro que, nesse caso, há uma injustiça social monstruosa e anestésica. Esse é um caso concreto de que as luzes do natal cegaram e o bom velhinho, um bom funcionário, não saiu da cadeira vermelha do shopping. Não seremos felizes sozinhos faltará sempre algo: os outros. Do contrário o Senhor não será nosso Pastor (cf. Sl 22) e nem seremos conduzidos aos verdes prados.

A comunidade, em verdade, é a vivência fundamental para a realização do ser humano. Sem o gesto empático vivido de forma ética não podemos dizer feliz ano novo! Que ano? Que novo? Não adianta pular sete ondas, vestir-se de branco, amarelo ou preto. Palavras e gestos, abertura e reconhecimento, amor e verdade, felicidade e comunhão, indivíduo e comunidade constituem a felicidade para 2016.

Porque nossa divinização passa pela nossa humanização. É sendo verdadeiramente pessoas humanas que participaremos da encarnação do Verbo divino. Importa, pois, regredir, reflexivamente, para o passado (2015) para prosseguir num presente (2016) fazedor de um futuro não à mercê da sorte, mas da edificação da liberdade. Não existe sorte, existe acaso. Mas, o mais certo é as escolhas certas! Pois, “a realidade é superior à ideia”, afirma o papa Francisco. Assim, não pode haver tensão entre realidade e ideia, mas unidade. No entanto, Jesus provocou escândalo porque acolheu pecadores e comia com eles (cf. Lc 15,1-2). Nesse viés, não existe unidade e paz opaca e inerte. Se seguimos, de verdade, o Mestre teremos que “escandalizar” e “nos tornamos impuros”. Urge, com isso, acolher, comer e festejar junto à mesa dos encontrados. Aqueles que chamam de pecadores. Sendo assim, enquanto homens novos podemos festejar um ano verdadeiramente novo.

Shalom a todos os homens de boa vontade!