SAGRADAS ESCRITURAS

 PALAVRAS SÁBIAS, VOZ DIVINA

As palavras são fonte de comunicação e, mais ainda, expressão da nossa própria alma. Por isto, a Igreja insiste que as Sagradas Escrituras revelam a “alma do próprio Deus”. As palavras não são apenas sistemas de comunicação, mas desvelam a própria essência de seu comunicador. Assim, quando lemos as palavras divinas na Bíblia, descobrimos a própria grandeza de Deus e sua imensa misericórdia. Os autores divinos são almas inspiradas que recebem a comunicação de Deus e as comunicam aos fiéis para que todos recebam a mensagem divina. Deus se comunica por ações no mundo, por manifestação da natureza, bem como por meio de seu espírito que invade o coração de profetas e mensageiros, que se tornam mediadores dos sentimentos divinos.

GRANDE NOVIDADE: DEUS SE COMUNICA

Deus interage com a família humana. Sua primeira comunicação foi a maravilhosa criação. Falou sempre por seus místicos, seus profetas, seus santos.  Assim foram os autores sagrados de todos os povos, que escrevem os livros sagrados. Em todos eles, encontramos frases, parábolas, orações e ensinamentos nascidos no coração divino e revelados aos seus fiéis. São os grandes profetas do mundo, os grandes líderes das grandes religiões. Na Antiga Aliança, Deus se comunica também por meio de seus grandes patriarcas e profetas e também profetizas. Deus se revela ainda por meio de sua ação em favor de seu povo, sobretudo  na libertação do povo do Egito. Deus se manifesta e estas histórias são inscritas nas páginas bíblicas, constituindo o livro sagrado. Mais ainda; o ponto elevado da revelação do coração de Deus se realizou na encarnação do filho de Deus. Um novo e inédito livro sagrado, onde o próprio Deus se apresenta, in persona, e revela o amor e a misericórdia divinas. Jesus Cristo é a verdade mais sublime de Deus. É o caso absoluto de que um Deus habita as páginas de um livro, tornando-o livro sagrado. Livro sagrado é a codificação dos sentimentos divinos, coroados por palavras verdadeiras, que inspiram a existência humana, para que o mundo tenha uma luz para seguir e uma força para lutar.

DEI VERBUM:

 UM DOCUMENTO QUE MUDOU A IGREJA

Entre os vários documentos promulgados pelo Concílio Vaticano II, está a Dei Verbum, que é a exaltação da Sagrada Escritura, que andava distante das mãos dos  fiéis católicos. A consciência dos pastores denunciava que os cristãos precisavam resgatar a Palavra de Deus, como caminho para chegar a Deus, para conhecê-lo e para praticar seus ensinamentos. A Sagrada Escritura foi contemplada na Constituição Dogmática Dei Verbum (Verbo de Deus), um valioso documento que revolucionou a relação dos católicos com a Bíblia. Este documento foi inscrito como Constituição Dogmática, por tratar matéria de fé e relaciona a Palavra com a Tradição e Magistério. Este texto foi promulgado em 1965 com quase unanimidade (2344 afirmativos e 6 abstenções)por Paulo VI. Neste documento, encontramos uma boa relação entre a Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério.

Assim escreveu o Papa Paulo VI, quando apresentou esta Constituição Dogmática: “O sagrado Concilio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus proclamando-a com confiança, faz suas as palavras de S. João: “vos anunciamos a vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu: vos  anunciamos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo" (1 Jo  1, 2-3). O Documento é muito importante para entender como lidar com a Palavra de Deus, os modelos de liturgia e doutrina que foram se organizando ao longo dos seculos.

O PROCESSO DA REVELAÇÃO NA DEI VERBUM

O Documento tem seis partes fundamentais, escritos numa lógica ascendente, que nos carrega pelas mãos para a compreensão e a plenitude destas verdades divinas.

Iniciamos com o Proêmio, uma espécie de “considerações iniciais” e seguimos com o Capítulo I – A revelação em si mesma,  onde se revela que Deus quis, “na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4)” (n. 2). A revelação é um convite de Deus, por sua própria iniciativa para que os homens todos sejam convidados a viver em sua graça e em seu amor.

 

Segue – se o Capítulo II –  A transmissão da Revelação Divina, a qual é realizada pela graça de Deus, como um ato de integração com a humanidade. Deus vem ao nosso encontro para nos manifestar seu amor e seus ensinamentos. Foi através de seus apóstolos e seus sucessores, que foram transmitidos as verdades do Evangelho. Esta transmissão é para “todas as gerações e para a salvação de todos os povos” (n. 07 ). Tudo que foi transmitido “pelos profetas, foi por Cristo  cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando aos povos os dons divinos” .

 

 No Capítulo  III, que ensina que  a  inspiração Divina da Sagrada Escritura e a sua Interpretação, aprendemos que  “toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas» ( Tim. 3, 7-17). (n. 11). As verdades da Bíblia, especialmente do Evangelho não são meramente humanas, mas expressão da vontade de Deus, reveladas no Espírito Santo para toda humanidade, para que todos sintam a presença de Deus e sigam o bom caminho da salvação. Além disso, é importante que “o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras”. (n. 11). Sem a devida interpretação, caímos no fundamentalismos e usamos a Palavra de Deus para nosso próprio interesse e corremos grandes riscos de manipular seu conteúdo.

 

Para mostrar a unidade entre os dois testamentos da Bíblia, encontramos o Capítulo  IV, sobre o  Antigo Testamento. Entendemos aqui que “Deus amantíssimo, desejando e preparando com solicitude a salvação de todo o gênero humano, escolheu por especial providência um povo a quem confiar as suas promessas” (n. 14). Deus tomou a iniciativa de se comunicar com o povo hebreu, realizando com ele uma grande aliança. Esta aliança é uma vocação, quer dizer um chamado divino para o povo seguir fielmente os ensinamentos de Deus. O pacto foi firmado entre Deus e Abraão, depois Moisés e todos os patriarcas. Sempre iluminado pelos profetas e hagiógrafos, que são os escritores sagrados dos livros  bíblicos. É a vocação para um pacto de amor e de fidelidade.

Todos os povos da terra foram convidados para viver em unidade com Deus. Deste modo, semelhante ao povo hebreu, os povos todos foram vocacionados para a salvação, tem seus livros sagrados (escritos ou orais) e buscam a Deus para viver em harmonia e encontrar a salvação.

 

O ápice das verdades divinas se encontra no Capítulo  V –  O Novo Testamento.  De fato, esta é a plenitude da revelação divina, pois quando chegou a plenitude dos tempos (cfr. Gal. 4,4), o Verbo fez-se carne e habitou entre nós cheio de graça e verdade (Jo 1,14). Cristo estabeleceu o reino de Deus na terra, manifestou com obras e palavras o Pai e a Si mesmo, e levou a cabo a Sua obra com a Sua morte, ressurreição, e gloriosa ascensão, e com o envio do Espírito Santo” (n. 18) . Jesus Cristo é mais que um escritor sagrado colhendo a inspiração divina. Jesus Cristo é a própria revelação. Ele é o próprio Deus que se revela falando, agindo e testemunhando a vontade de Deus. Mais que o retrato falado de Deus, como encontramos nas demais revelações, o Novo Testamento é o auto-retrato de Deus para toda humanidade.

A plenitude dos tempos significa o tempo de Deus, seu “kairós”, onde Deus se faz presente e eterniza o tempo, portanto o que se revelou por Jesus Cristo se manifesta em todos os tempos e lugares da história da humanidade. Acreditamos piamente que  “o Senhor Jesus assistiu os seus Apóstolos como tinha prometido (Mt 28, 20) e enviou-lhes o Espírito consolador que os devia introduzir na plenitude da verdade” (Jo 16, 13).

 

A Bíblia é um livro precioso, mas igualmente um “livro de cabeceira” dos cristãos e deve integrar  a vida pessoal e pastoral. Assim, o Capítulo VI –  A Sagrada Escritura na Vida da Igreja, nos mostra como toda a Igreja deve se deixar “encharcar pela Palavra de Deus”. Este é um convite para todos os pastores e fiéis da comunidade cristã.

Quando recorda que nem sempre valorizamos muito a Bíblia na liturgia e na espiritualidade pessoal, somos exortados que “ a Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo” (n. 21). Não podemos tratar a Palavra de Deus como uma joia preciosa que deve ser guardada num cofre, antes uma joia tão importante que devemos usar em todas as ocasiões da vida; naquelas mais solenes que são os sacramentos, mas também naquelas mais ordinárias, que é o nosso cotidiano, para sermos sempre iluminados por esta palavra preciosa.

TEXTOS ORIGINAIS,  TRADUÇÕES E EDIÇÕES

A Palavra de Deus foi escrita em várias línguas, conforme os períodos e os povos que as escreviam, sofrendo grande influência dos períodos onde os textos foram levados ao pergaminho. Normalmente os conteúdos eram textos orais, repetidos pelos anciãos, pelos mestres e pelos sábios que, num momento de maior estabilidade da comunidade, eram colocados em rolos de pergaminnho, cuidadosamente escritos e conservados. A tradição afirma que muitos destes textos foram registrados em pergaminhos (material feito com peles de animais, sobretudo cabras e carneiros)  e mesmo em papiros (folhas feitas de vegetal, muito comum nas margens dos rios do Oriente Médio e da África, sobretudo o Rio Nilo) e mais tarde em outras formas de material para escrita. Muitas vezes, textos especiais eram inscritos em pedras, telhas e tijolos e mesmo nos frontispícios dos grandes templos.

O Novo Testamento foi escrito em hebraico, língua originária e mais clássica dos povos semitas e também em suas vairações dialetais. No entanto, os grandes mestres as escreveram em  hebraico, mais sofisticado e regular, para organizar e unificar os textos, evitando repetições e erros, que seriam grande problema para as tradições posteriores. O Novo Testamento foi escrito em aramaico, sobretudo o livro de Mateus, seu primeiro livro, pois foi escrito para os próprios hebreus, convertidos ao cristianismo. De forma geral, o aramaico é umaforma dialetal do hebraico mais clássico.  Os demais livros do Novo Testamento foi escrito em grego, que era a língua comum mais usada na Palestina, onde os livros foram escritos e conservados no primeiro século do cristianismo. Encontramos, no entando, expressões e palavras de outras línguas presentes no contexto da transcrição destes livros. 

Um grande escritor e estudioso da Bíblia, São Jerônimo, esteve muitos anos nas regiões da Palestina, para entender bem as palavras e seus significados e assim traduzir, a pedido do Papa Dâmaso (ano 410) o texto para o latim, uma vez que a Igreja se expandia para todo Império Romano, onde o latim era a língua predominante. Este texto recebeu o nome de Vulgata, que quer dizer, para o “vulgus”, para o povo; um texto popular. Mais tarde, a Palavra foi traduzida para muitos e muitos idiomas, que se reconhecem até nossos dias.

Quanto à edição, a primeira impressão da Bíblia foi realizada pelo sábio alemão Guttenberg, que inventou a “máquina de imprimir” e o livro sagrado foi seu primeiro trabalho. Hoje temos infinitas impressões e edições, que são usadas pelas comunidades, existindo uma divergência pequena entre elas, sobretudo na compreensão de suas palavras. As edições variam conforme a intenção dos escritores que as registram segundo suas próprias ideologias religiosas. Assim, os fiéis devem estar atentos, pois as traduções não são ingênuas, mas intencionais. Devemos nos servir das traduções orientadas pela nossa Igreja e seus pastores, preferencialmente.

UM DIÁLOGO SEM FIM

A Igreja nos ensina, por meio da Dei Verbum (Verbo divino) que Deus, o logos divino se coloca em diálogo permanente com a humanidade. Ele falou pelos profetas e continua falando pelos seus pastores, seus mestres e sábios. A Igreja deve ouvir a Palavra e apresentar aos povos, com fidelidade e atualização. Não basta repetir as palavras escritas se os contextos e significados evoluíram. Para ser fiel é preciso entender o que Deus diria hoje, como falou naqueles tempos. Tem sido ultrajante  perceber infinidade de pregadores repetindo “feito papagaios” textos bíblicos, pinçados intencionalmente para alienar multidões de fieis de boa fé, que buscam o rosto de Deus verdadeiro. A palavra é revelação, mas o Espírito continua vivo e iluminando os povos no caminho da fé e da salvação, através da prática do bem e da formação de comunidades verdadeira de irmãos.

A diversidade linguística daqueles tempos e de nossos contextos e povos exige que compreendamos o verdadeiro significado dos conteúdos bíblicos e prolonguemos o diálogo entre Deus e seu povo, realizado por Jesus Cristo no Espírito Santo. É preciso silêncio no coração e coragem na alma para sermos fieis e levarmos a Boa Nova até os confins.  

Pe. Antônio S. Bogaz – Prof. João Henrique Hansen

Autores de A praça da dádiva. Ed. Lafonte. 2017

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BOX 1

GÊNEROS LITERÁRIOS

Os textos bíblicos são escritos em grandes períodos da história, refletindo o contexto e sendo influenciado pelos acontecimentos de cada tempo. Assim, os gêneros literários são muito frequentes na Palavra de Deus e devem ser cuidadosamente apreciados. Gêneros literários são as formas linguísticas de comunicar, conforme a intenção do escritor. Assim, é preciso reconhecer o gênero literário de cada texto e de cada autor, para entender seu verdadeiro significado. Encontramos nos textos bíblicos parábolas, exortações, orações, mitos e textos históricos. Nem todos os textos são históricos e muitos são mitos, que revelam verdades por meio de textos míticos, como a criação do mundo, a torre de Babel, entre outros. Muitos textos são simbólicos, como vemos no Apocalipse. Sem conhecer os gêneros literários, os pregadores os repetem como se fossem fatos concretos,  gerando o fundamentalismo que é a maior praga nas pregações de tantos líderes religiosos. Sem a devida atenção aos gêneros literários, a religião torna-se uma forma atroz de alienação e de manipulação das assembleias fieis e confiantes, gerando depois desconfiança e ceticismo. Somos convidados a aprofundar a palavra, para que sua interpretação seja saudável e nos coloque no caminho verdadeiro da salvação. De fato, diz o Documento da Dei Verbum que “para descobrir a intenção dos hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, os “gêneros literários” (n. 11). Deus se comunica em parábolas, em exortações, em poesia e prosa.

 

 Deus não se cala!

 

BOX 2

SETEMBRO: CONVIDADOS PARA LER A BÍBLIA

Devido aos confrontos históricos entre católicos e protestantes, as comunidades católicas sempre ficaram distantes da Bíblia, contrapondo-se às teorias dos reformadores que colocavam as Sagradas Escrituras nas mãos de seus fiéis, dando mais liberdade em sua interpretação, inclusive facilitando sua tradução e divulgação.

Os católicos, ao longo dos últimos séculos, evitaram a leitura pessoal da Palavra de Deus, delegando essa tarefa aos seus ministros. Nestas últimas décadas, por inspiração do Concílio Vaticano II, que mostra a importância da Palavra de Deus, como semente da evangelização, as comunidades cristãs começaram a valorizar a Bíblia e empenhar-se em campanhas para sua divulgação e leitura.

Para melhor atingir este objetivo, a igreja no Brasil começou a dedicar o mês de setembro a esta finalidade e assim, esse mês passou a ser denominado na vida litúrgica das comunidades como "mês da Bíblia". A Bíblia tornou-se mais próxima dos fiéis  e estes a tomaram em suas mãos nas celebrações, encontros, vias-sacras, novenas, ofício divino e outras. A temática da Bíblia teve seu auge na década de oitenta e, embora com menos vigor, ainda está presente em nossas celebrações.

  

Do livro: Tempo comum e a festa dos santos. Paulus: 2005

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