Abrimos a Bíblia e lemos suas páginas. São textos maravilhosos e cheios de sabedoria. Mas é preciso algum conhecimento para interpretar esses ensinamentos. Sem o verdadeiro conhecimento dos vários estilos, corremos o risco de perder a noção da verdade que o escritor sagrado quis revelar. Estamos falando de Gêneros Literários, sua importância e uso na literatura bíblica. Nenhum fiel que toca a Bíblia para ler pode ignorar a necessidade de conhecer os gêneros literários. De fato, a identificação destes estilos é fundamental para compreender corretamente os textos revelados. Cada texto tem seu próprio linguajar, bem como suas formas próprias e seu estilo. Quando lemos os textos, percebemos e identificamos o seu gênero. Não podemos ler uma parábola como se fosse uma história concreta, pois ela é uma metáfora. È impossível ler os livros sobre o final dos tempos como se fosse uma cronologia ou um acontecimento cósmico. A ignorância na interpretação faz com que se provoque ceticismos, pois estes não acreditam nos fatos como são narrados ou fanatismos, onde os leitores tomam os textos como se fossem histórias incondicionais. Vamos aprofundar a variedade dos gêneros literários, para amar sempre mais a Palavra de Deus e torna-la força transformadora em nossa vida.
GÊNERO LITERÁRIO BÍBLICO: QUE É ISSO?
É muito importante entendermos a Palavra de Deus, quando identificamos o gênero literário. Nos livros da Bíblia encontramos uma linguagem muito particular. A Palavra de Deus soa tão bela aos fieis, que apesar do gênero ser, muitas vezes, complexo, nós o identificamos pela prática da leitura que nos envolve. Estilos de linguagem acabam nos levando para as origens do texto bíblico, o que significa que nós percebemos a diferença dos estilos, mas, no entanto estamos mais preocupados em entender a Palavra de Deus. No entanto, para que possamos entender melhor a mensagem dos textos, precisamos utilizar os diversos estilos de linguagem que compõem a Bíblia.
FORMAS LINGUÍSTICAS NA PALAVRA REVELADA
Antigamente o texto sagrado era apenas um veículo para a compreensão do leitor perante Deus. O mundo mudou, ainda mais depois do Vaticano II que reintroduziu a Palavra de Deus. Isto bastou para que a importância dos textos bíblicos aumentasse consideravelmente os estudos sobre a Bíblia. A humanidade redescobriu os textos, passou a ficar mais próxima deles, de modo que este interesse fez renascer os estudos dos gêneros literários na Bíblia e acabou aumentando para que os fieis pudessem entender melhor estas novas fronteiras do conhecimento humano.
O assunto dos gêneros literários da Bíblia é vastíssimo para ser explorado de uma só vez. É necessário adentrar vagarosamente neste campo complexo de linguagens. Vamos detalhar alguns temas e assim ter uma ideia da dimensão encontrada nos livros sagrados. A compreensão da totalidade dos gêneros na Bíblia é um estudo infinito, pois quanto mais se lê, mais gêneros vamos encontrando na Sagrada Escritura. O leitor bíblico deve colocar-se sempre nas mãos do Espírito Santo, para que Ele ilumine nossa inteligência e nos abra a nossa mente para enxergarmos estes gêneros, que não estão escondidos, mas que requerem nossa atenção dobrada para entender melhor este maravilho presente de Deus. Assim, os fieis e os estudiosos da Bíblia podem localizar os inúmeros gêneros literários, permitindo um maior desempenho para a leitura dos textos bíblicos.
ALGUNS ESTILOS LITERÁRIOS NO ANTIGO TESTAMENTO
São muitos os gêneros literários, pois os autores bíblicos se servem destas narrativas diversificadas para tocar os assuntos revelados e darem conta de conteúdos delicados e bem misteriosos. Alguns deles são bem evidentes e precisam ser detectados, para que se possa entender o verdadeiro significado da mensagem. Sem esta compreensão, corre-se o risco de entender erroneamente os textos e sobretudo provocar falsas revelações.
A – Gênero Jurídico e as normas da revelação mosaica. Nos cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco, encontramos textos voltados para normas e leis para o povo de Deus, as leis apotídicas e casuísticas, que são leis propostas para momentos e situações particulares e bem concretas.
B – Gênero Narrativo e as bonitas histórias: São textos que contam uma história e de preferência que consiga transmitir uma mensagem para os fieis, com personagens bem definidos, cenários e contextos próprios. Sã bastante variáveis nas revelações e podem ser do tipo de narrativas, epopeias, épicos, tragédias e romances. Na epopeia, por exemplo, há sempre um herói nacional. Lembramos de Abraão, Gedeão e Davi. No gênero épico, sem dúvida alguma colocaríamos, entre tantos, Moisés, que conduz seu povo pelo deserto, que fala com Deus, que nasce num lar hebreu e é colocado numa cesta de palha e navega o Rio Nilo até parar nas mãos da filha do Faraó, que o adota. Uma história onde os personagens têm identidade, ideias e mensagens e são bastante envolventes. Não é preciso dizer mais nada, ele será o líder do povo, ele resgatará o povo judeu, atravessará o mar na sua fuga até chegar à Terra Prometida.
Na Tragédia, podemos pensar num homem que tem tudo e de repente se vê aniquilado diante da miséria, da honra ou do desastre através de ações errôneas. Os estudiosos citam neste modelo literário Sansão, Saul e Salomão, entre tantos, que viveram dramas pessoais, familiares e comunitários.
No Romance, com alegrias e sofrimentos, vemos histórias de amor e ódio, esperança e vitórias. Nestes casos, não pode haver uma história sem o envolvimento amoroso, como nos livros de Ruth e Ester.
Por sua vez, a poesia aparece para mostrar que na Bíblia há também, uma preocupação com o lado da espiritualidade em que os homens declamam seu amor principalmente a Deus. A poesia aparece nos livros de Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e no Cântico dos Cânticos. Podemos também encontrar a poesia no Pentateuco e nos livros proféticos. São denominados como livros sapienciais.
A poesia hebraica é cheia de frases que procuram aproximar o homem de Deus através das palavras inspiradas pelo próprio Senhor. É usada de forma graciosa e com um lirismo realmente inspirado pelo próprio Deus.
LIVROS E GÊNEROS DE PROFECIA
O Gênero profético também é encontrado na Palavra de Deus, onde o profeta procura através de seus escritos fazer com que o povo entenda a vontade de Deus através de seus sermões. Com linguagem precisa e coerente, o profeta está sempre anunciando ou acusando e assim fazendo com que o povo sinta que está no caminho do mal e precisa pensar que isto fere o Senhor. Ou deve seguir no caminho do bem e da verdade. São palavras duras, sem dúvida alguma ,que ninguém gosta de ouvir, mas os profetas tinham consciência de sua missão. Eles acreditam que eram inspirados por Deus, para mostrar estes deslizes onde o povo vive se desencontrando do bom caminho e caminhando em sentido totalmente inverso ao que o Senhor direcionou.
Neste gênero profético, encontramos muitas exortações e oráculos para mostrar o arrependimento, o reencontro com Deus, a vontade do Altíssimo e principalmente colocar dentro dos corações do povo, que Deus está presente em todos os momentos e que não devemos ofendê-lo.
LITERATURA E SIMBOLOGIA APOCALÍPTICA
No livro de Daniel, encontramos, como exemplo, as características do Gênero Literário Apocalíptico. Ele preenche suas palavras com inúmeros símbolos, imagens, visões e revelações num dos períodos mais complexo dos judeus, onde eram perseguidos e maltratados. Anunciam tempos maravilhosos e vitoriosos, ao mesmo tempo que lamentam as desgraças do povo. Daniel mostra claramente o que acontece com os bons e os ruins, os puros e os ímpios, os que oravam e os que praguejavam. Em suma, que oravam ao Senhor e com os que não se importavam com Ele, onde o profeta prevê desgraças e castigos, uma vida difícil e pecadora que levará seu povo a ruína.
SABEDORIA DIVINA NO CORAÇÃO DOS HOMENS.
Nos livros poéticos e sapienciais do Antigo Testamento encontramos Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (Qoelet), Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico (ou Ben Sirac). A sabedoria e a espiritualidade desses livros nos mostram o povo em si, pois trazem uma origem mais profana do que religiosa nos escritos. Percebe-se que a fonte não era direcionada à religião diretamente, mas pode ser interpretada nesta chave de leitura. O povo do Oriente tem uma grande mística religiosa e assim procura escrever para difundir sua sabedoria e sua virtude. Como todo povo, apreciamos a literatura que vem mais do coração e do sentimento e que se torna mais difundida do que uma literatura feita para uma minoria, principalmente naquela época. Deste modo, a sabedoria bíblica judaica não é muito diferente da sabedoria oriental. São textos que ensinam a viver melhor e viver mais próximos de Deus. São ensinamentos para a convivência familiar e comunitária.
Este gênero permite entendermos melhor a sabedoria da vida no dia-a-dia. Podemos citar vários livros, mas particularmente Provérbios, ou a história de Jó, que tristemente mostra que Deus cansou-se de sua criação e suplica por conversão. O fato é que os sábios da época criticaram muito os direcionamentos religiosos, que se haviam desvirtuado. São texto importantes conservados na tradição e transladado de geração em geração, chegando até nossos dias.
Esta amostragem dos gêneros literários dos textos do Antigo Testamento não explora todos os estilos, mas nos manifestam a riqueza dos textos bíblicos, guardados nos inúmeros escritos que marcaram a história da humanidade.
ESTILOS LITERÁRIOS
NOS TEXTOS DA NOVA ALIANÇA
O Novo Testamento também apresenta várias formas linguísticas para expressar seu conteúdo. Dado o enorme potencial mistérico das narrativas da vida de Jesus, bem como as pregações dos escritos das Cartas que se seguiram, não foram poucas as tentativas de buscar nos gêneros literários clássicos, formas eficientes para revelar o conteúdo da fé cristã.
GÊNERO NARRATIVO NOS EVANGELHOS
Qual o gênero literário das biografias de Jesus? Quando nos perguntamos o que é o evangelho, pensamos primeiramente num tratado teológico, depois uma biografia da vida de Jesus, uma simples narração, ou uma infinidade de possibilidades que nunca chegaremos a uma conclusão. Na realidade temos o gênero único na literatura universal, aliás, apenas o Evangelho. Somente podemos atribuir o título gênero único literário do Evangelho escrito pelos autores Marcos, Matheus, Lucas e João. Os evangelhos foram escritos pelos quatro evangelistas a fim do registro do kerigma (mensagem), proclamada pelos apóstolos, discípulos e posteriormente pelos que se tornaram cristãos. A mensagem foi direcionada para revelar a encarnação do Verbo Divino e a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Em palavras mais teológicas, revelam o mistério pascal de Jesus Cristo.
Marcos, segundo relatos, teria sido o primeiro a escrever neste modelo literário e posteriormente foi seguido pelos demais evangelistas. O fato é que temos nestes evangelhos toda a história de Jesus abordando nascimento, personalidade, sabedoria, milagres, defesa da liberdade do ser humano, misericórdia, caridade, mistério de morte e ressurreição, entre outros. Nestes eventos, são inscritos os ensinamentos maravilhosos das mensagens, levando sempre ao convite para seguir Jesus, como o enviado definitivo de Deus Pai.
Portanto, os evangelhos se inserem na literatura universal como gênero único, num estilo pessoal do Senhor Jesus, que tem a grande capacidade de serem textos atemporais, que podem ser lidos em todos os lugares e tempos, sempre com incrível atualidade. Encontramos nos seus capítulos várias subdivisões, entre elas, as parábolas, narrativas de milagres, cânticos, provérbios, genealogias, histórias da infância de Jesus, os fatos dos seus últimos dias e tanto mais.
EPÍSTOLAS E CARTAS PASTORAIS
Despedindo-se das comunidades, seus fundadores enviavam cartas com mensagens recordando seus ensinamentos, corrigindo desvios e explicando elementos doutrinais da fé cristã. São muitos os textos e destacamos neste gênero, uma série de cartas, a maioria atribuída a Paulo, mas encontramos também cartas de Pedro, Judas Tadeu e João.
Era necessário comunicar-se com outras pessoas e na época do Império Romano escrever cartas era o meio mais prático. Acabou se tornando um veículo fascinante que Paulo, depois de suas viagens, dava continuidade de sua evangelização através das cartas para as comunidades que criou. A Epístola permite uma variedade enorme de temas abordado, conforme as necessidades concretas dos correspondentes.
GÊNERO LITERÁRIO NARRATIVO.
Também no Novo Testamento vamos encontrar o gênero literário narrativo, lembrando do livro Atos dos Apóstolos, que mostra as atividades de Pedro e Paulo iniciando suas primeiras comunidades. Isto, sem contar que a vida de Jesus Cristo está inserida no Novo Testamento o tempo todo. Trata-se de é uma meta narrativa dentro dos evangelhos. São narrativas piedosas, mas recorrem a acontecimentos históricos, registrados pelos testemunhos destes eventos. Sua intenção é deixar um legado objetivo e testemunhal para as novas gerações. Por esta razão, seus autores se apressaram em registrar estes fatos.
GENEALOGIAS: A VIA SANGUINEA DOS PERSONAGENS.
Na abertura do evangelho de Mateus, encontramos a Genealogia de Jesus, que traz todos os nomes dos seus antepassados. Este gênero tende a mostrar a importância da família no histórico do personagem e sempre quer mostrar que são parte de uma descendência prometida. Nos tempos hebreus, a importância da corrente sanguínea é importante para dar legitimidade à promessa de Javé. Esta feita, quer se provar a ascendência davídica de Jesus. Trata-se de um estilo típico que utiliza as diretrizes necessárias e objetivas para entendermos a pessoa que vamos abordar. Algumas são bastante longas, outras menos extensas, dependendo sempre do personagem e sua importância na história.
APOCALIPSE, ENTRE ESTRELAS E DRAGÕES
Assim como no Velho Testamento, no Novo também encontramos este gênero no último livro da Bíblia, o Apocalipse de João. Temos o aparecimento de imagens, visões, revelações e símbolos, entre tantos. Não podemos esquecer que, nesta época, o Império Romano dominava a maioria dos países do Oriente. Com os primeiros cristãos, praticamente, começou também a perseguição dos imperadores Nero e Domiciano. No Apocalipse de João, vamos encontrar um dos livros mais interessantes da Bíblia, que em seus detalhes mais contundentes nos mostra o juízo final. As interpretações são inúmeras, a leitura é complexa e interessantíssima, o leitor precisa reler muitas vezes para entender este texto que João nos legou. Mal interpretado, este texto pode ser uma catástrofe para a comunidade e gerar muitas heresias, fanatismos e blasfêmias.
SAGRADA ESCRITURA E OS ESTILOS LITERÁRIOS
É maravilhoso mergulhar nas páginas bíblicas. É penetrar num universo de tesouros brilhantes que alegram nosso coração e fortalecem a nossa fé e nos leva a fazer o bem. Crer e agir, são duas forças de nosso cristianismo. Mergulhar nas páginas bíblicas é como mergulhar nas profundezas do oceano e descobrir as suas grandes belezas, de fauna, de cores e de vegetais. Mas é preciso estar preparado, para não ficarmos cegos diante de tanta beleza. Conhecer os gêneros literários é como se preparar para entrar no oceano dos livros da sagrada Escritura. Os gêneros literários nos ajudam a entender melhor o texto bíblico que está em nossas celebrações, percebendo os estilos de linguagem, as origens dos textos, seu contexto cultural e histórico e seus símbolos.
Pe. Antônio S. Bogaz – Prof. João H. Hansen
Apresentadores da série: Bíblia Sagrada: um presente divino. TV Imaculada. Brasil
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BOX 1
OS PADRES ANTIGOS E A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
A busca das verdades cristãs na sua fonte principal, os evangelhos, foi um trabalho precioso dos grandes teólogos da patrística. A grande fonte foi sempre a palavra de Deus, na narrativa dos evangelistas e nas cartas dos apóstolos, que foram transcritas pelos monges anacoretas com tanto desvelo e coerência. Para responder aos novos desafios de uma igreja missionária e dialogante, a palavra de Deus é a referência universal e preciosa.No século III, um grande padre da Igreja, Orígenes, nos aponta alguns métodos de leitura e interpretação bíblica, para seu verdadeiro conhecimento e para edificar as comunidades.
Orígenes transcreve a Sagrada Escritura em colunas, em seis línguas. Esta é uma obra fabulosa, chamada Hexaplas. Sua doutrina destaca que Deus é o princípio absoluto da criação. Embora se revele em todas as criaturas, como o sol que nos toca por seus raios, sua revelação fontal é o Logos, que é Cristo. Sua contribuição mais importante é o instrumental exegético, como método de interpretação bíblica. Ele explica que os textos bíblicos devem ser entendidos a partir do estilo narrativo dos seus autores.
Muitas histórias do Antigo Testamento e as parábolas bíblicas são narrativas alegóricas, apresentadas como mitos, que expressam verdades fundamentais de Deus e de seu povo e devem ser entendidos como expressão da fé fundamental: Deus faz aliança com seu povo e participa de sua história. A plenitude desta Aliança é Jesus Cristo.
Muitos textos manifestam a literatura escatológica e apocalíptica. Estes textos devem ser destacados com evidência, pois não podem ser lidos como fatos históricos, mas como tentativa de entendimento dos últimos tempos da humanidade. Estes textos revelam o antropomorfismo de Deus e não podem ter interpretação literal.
Da Obra: A.S.Bogaz – J.H. Hansen – M.A. Couto. Patrística: caminhos da tradição cristã. Paulus:2014