O poder das mãos: a experiência do Sentido no tempo quaresmal

Jesus é a mão de Deus. Como Filho Jesus expressa a face do Pai. Jesus é, segundo o papa Francisco, o Rosto da Misericórdia (FRANCISCO, 2015, n. 1). Deus sendo amor se manifesta em misericórdia. Misericórdia é a palavra que define o amor de Deus pelo humano (Adam). O ser humano é assim expressão da generosidade de Deus. Somos obras de Deus, cuja imagem e semelhança nos constitui dignidade. Nosso Criador nos é semelhante. Com isso, podemos conhecê-lo por analogia. Como então, entender a ação de Deus em nós? Com o coração. Porque “só se enxerga bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos” (EXUPÉRY, 2015, p. 72). Como sentir o afeto das duas mãos de Deus nos modelando? Se deixando modelar. Pois, “estragou-se o vaso que ele estava fazendo, como acontece à argila na mão do oleiro. Ele fez novamente outro vaso, como pareceu bom aos olhos do oleiro (Jer 18, 4).  

Jesus e o Espírito Santo são as duas mãos de Deus (cf. Lc 4,18-19). Isso é constatado nos evangelhos, cuja atitude de Jesus foi tocar, cuidar e conduzir. Com a sogra de Simão Jesus “Aproximou-se pegando na mão e a ajudou-a a se levantar, a febre a deixou e ela começou a servi-los” (Mc 1, 31). Segue que a mão é presença e acolhida. A encarnação se dá pelo toque do Eterno ao finito. A partir daí o ser finito busca o ser Eterno (cf. STEIN, 2013).

Deus e o humano se tocam, se encontram. “E o Logos se fez carne e morou entre nós” (Jo 1, 14). Somos chamados a testemunhá-lo. Carne (basar em hebraico) é limite, igualdade com outros seres, fragilidade, sensibilidade, enfim, humanidade. De fato, procede de Deus “todo espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne” (1Jo 4,2). A carne, em verdade, é deífera, ou seja, portadora de Deus. De fato, a salvação vem pela carne (cf. LACROIX, 2009, p. 168).

As mãos simbolizam a pessoa. Seu poder é o serviço. Quando tocamos ou apertamos as mãos transmitimos nosso mundo interior. Elas nos revelam. Captamos o estado de ânimo do outro quando pelas mãos nos aproximamos. Então, as mãos é mediação de encontro interpessoal e não somente intersubjetivo. Porque envolve as pessoas em ação (cf. WOJTYLA, 1982). “Através das mãos comunicamos nossa energia, nosso coração” (LELOUP, 2014, p.124). “Põe o dedo teu e vê minhas mãos e traze a mão tua e põe em meu lado” (Jo 20,27). As mãos aqui significam a experiência pessoal com Jesus ressuscitado. Tomé é a figura do discípulo principiante.

Em muitas culturas as mãos são usadas como instrumentos de cura (cf. LELOUP, 2014, p.124-128). Jesus sempre age tocando seja fisicamente seja espiritualmente. Nesse sentido, não podemos separar, mas distinguir entre toque físico e espiritual. O toque envolve todas as dimensões. Tocamos e somos tocados sempre. Ora, tocamos fisicamente, psicologicamente ou espiritualmente. Contudo, tocamos. Qual é nosso toque? É integral? Ou dicotômico? Separado da pessoa inteira o toque não cura. A cura de Jesus é eficaz porque é toque integral (cf. Mc 1,41-42). A verdadeira conversão só é eficaz quando Deus nos toma por inteiro.

Na nossa tradição católica presenciamos vários momentos sacramentais através do toque das mãos. Aliás o ser humano só se expressa pelas mãos de modo que a pessoa humana é atividade, cuja obra é criação a partir do dado natural. O convite do Criador é que o humano domine a terra (cf. Gn1,26). Dominar significa ser o senhor, o artífice e, portanto, pontífice entre a terra e o Céu (=o Criador). Acariciamos, cuidamos e protegemos pelas mãos. Criamos pelas mãos. Deus mesmo modelou o humano (Adam=terra) (cf.Gn 2,7). Somos ininterruptamente tocados pelas mãos providencias de Deus.

Quando nascemos necessitamos das mãos de outrem. Desde o nascer até o morrer as mãos nos acompanham. A mãe, cuidadosamente, cuida com suas mãos delicadas. E se quisermos tomar uma criança nos braços devemos ter mãos suaves e aconchegantes. Porque somos basar, isto é, frágeis. O pecado, com isso, é o limite da carne. Por sua vez, no batismo somos emergidos e resgatados por mãos. Enfim, toda nossa ação litúrgica é feita pelas mãos. Assim, experimentamos Deus pelas mãos.  

Um exemplo disso é a unção das mãos no rito de ordenação presbiteral. O bispo unge as mãos do ordenando para que ele transmita o Cristo (=ungido em grego) ao povo de Deus. Tais mãos são curativas. Elas passam a ser portadoras da paternidade de Deus cuja, expressão é cuidado misericordioso (=hesed em hebraico).

Neste tempo de conversão nos é proposto uma mudança de sentido e não só de ação. Porque o que fazemos pode ser em si bom, correto e até ético. Mas, o convite de metanóia (conversão) que Jesus nos instiga é integral, ou seja, abarca o ser da pessoa humana. O sentido é o elemento fundante da razão de ser de todo ato. O modo como fazemos caridade (próximo), o jejum (autoposse) e a oração (encontro com Deus) é o ponto primordial. Pois, não basta jejuar e rezar é preciso que nossas práticas piedosas brotem do interior do coração e transforme desde dentro.

Converter-se é crer no Evangelho (Jesus Cristo), é se deixar tocar e tocar. Quer queira ou não estamos sempre tocando. Não há neutralidade na vida humana. Porque viver é implicar e ser implicado na realidade em que estamos. Somos instigados sempre a agir.

Jesus é a mão terapêutica de Deus. Como agiu Jesus com Simão, Mateus, Zaqueu, a Pecadora, Pedro, Judas e Madalena? O modo como Jesus agiu somos convidados a agir também. Essa e nossa missão porque é nosso sentido de ser.

Nessa quaresma olhemos aos sentidos dos nossos atos de forma a reconhecer o sentido evangélico deles. São ações que afirmam e engrandecem nossa humanidade? Porque toda nossa prática de fé deve ser de baixo para cima, ou seja, da humanidade a divindade. O objetivo nosso, enquanto cristãos, é nossa divinização mediado pela humanização. Porque o humano em si é divino.

Nossa forma de sentir e entender o mundo que criamos e vivemos é constitutivo de nossa identidade. Cuidemos para que nossas ações não sejam superficiais como a dos fariseus (cf. Mt 6,1). A regra da nossa vida é a misericórdia. O modo de agir é a do bom Samaritano (cf. Lc 10, 33). Sejamos as mãos de Jesus como Jesus é do Pai! Pois, “onde houver cristãos -, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis da misericórdia” (FRANCISCO ,2015, n.12). “Ave Maria e avante”!

Cl. Renaldo Elesbão