Aflição eterna

A AFLIÇÃO DA ESPERA (QUASE) ETERNA

A PACIÊNCIA DO NELSON

A aflição da espera é que nunca sabemos quanto tempo demora. Até nos acostumamos a esperar: os convidados esperando a noiva no casamento (e a maquiagem se desfazendo), a terra seca esperando a chuva na roça (e as sementes morrendo), os pássaros esperando a primavera na floresta (e os ninhos sem filhotes) e os doentes esperando por vagas nos hospitais (e a enfermidade silenciosamente se agravando).

Estamos preocupados.  O Nelson é um homem honrado, trabalhador e, para elogiar ainda mais, dizemos que é o marido da Dona Ivone. Todo mundo gosta deles. Basta ter um mutirão na comunidade que lá esta o Nelson com o pincel na mão. Aliás, estava, pois como espera há meses uma cirurgia, não pode quase nem andar. Pode deflagrar seu aneurisma abdominal. Temos um amigo chamado Nelson, casado com D. Ivone. Quase todos os domingos, tomamos

Foi assim, o Nelson (e todos bons brasileiros trabalhadores) sempre  pagou impostos. Para Brasilia, para São Paulo, para Rio Claro. E ficou adoentado. Há seis meses, desde maio. Começou a procurar médicos e foi descoberto que ele tem um problema na aorta abdominal. Não sabiam que é muito sério? Mas a cirurgia é até costumeira, meio que simples. A cirurgia, a burocracia é um inferno. Todas as semanas esperamos que o Nelson tenha sido  chamado para fazer a cirurgia. Cada vez é enganado e empurrado para frente num diferente endereço. Exames e mais exames. Exames que vencem, portanto novos exames. Que vão vencer novamente a validade? Meses e meses esperando ser tratado como cidadão (digno e valoroso, como foi quando sempre trabalhou). Quer apenas fazer a operação para continuar vivendo feliz com a família e tomar café com os amigos, como qualquer um de nós que deseja viver.

Mas, que cruz, que enorme cruz está passando nosso povo. Não temos hospital de porte na nossa cidade e mesmo os que têm não dão conta do recado. Como o Nelson vai sendo jogado de endereço em endereço, a responsabilidade vai sendo jogada para outros níveis, outros departamentos. Será que apenas quem tem dinheiro tem direito a continuar vivendo. Lembro de um homem famoso, que era pobre.  Perdeu até mesmo a esposa, porque foi jogada de endereço em endereço. Hoje ficou poderoso. Mal senti uma febrezinha e tem ao seu redor dezenas de médicos. E se esqueceu daquela fila onde sua mulher esperou, esperou, esperou e…

Ninguém é culpado de ficar doente, sempre explicamos em aula que a humanização na medicina é mais necessária, ainda, do que se imagina. O paciente não pode ser somente um número na estatística, ou como ouvimos uma vez num pronto socorro, o paciente foi chamado pelo sintoma que tinha. A enfermeira simplesmente disse:

– Chegou o Cólica Renal, coloque na poltrona dois.

Ou seja, o paciente não tem identidade, é apenas o Sr. Cólica Renal e não o Sr. José da  Silva, olha a que chegamos! Parece que querem nos dizer que estamos doentes e somos culpados por isso. Ah, como ensinar o pessoal da saúde que ninguém fica doente porque quer, a vida é cheia de coisas lindas, bem melhor ir ao teatro, ao cinema, a igreja do que ir ao consultório do médico, ao hospital, fazer exames e tudo o mais…

Compare as janelas, os balcões e as paredes dos hospitais com os palácios públicos. Compare os banheiros, os vidros fumês, as almofadas. A dignidade perdeu a vergonha e as ações foram  substituídas por demagogias. Claro que tem dinheiro para a saúde, para segurança, para crianças.  Basta procurar nos bolsos bancários dos médicos super-salários, nas verbas desviadas, nos salários altos comissionados, nos nepotismos cruzados. Procure nos bolsos e não nas suas salivas.

Mas se ficamos doentes, precisamos de cuidados médicos. Dizem que tem médicos que ganham fortunas, outro dia lemos nos jornais que alguns médicos ganham por mês, o que um professor com título de doutor, trabalhando 40 horas por semana, corrigindo provas, trabalhos, preparando suas aulas, sempre se especializando, não ganha por ano. Pode? Pode!

Mas a saúde no Brasil sempre foi um problema. Existe um livrinho chamado Como entender a saúde na comunicação? Que nos fala exatamente isso, da falta de humanização. E nos conta como era a saúde desde o Egito antigo até hoje no nordeste. E ainda nos diz que o maior problema da saúde é o homem, que se preocupa com outros problemas, do que o cuidar do outro ser humano.

Estamos preocupados, muito preocupados. Lutamos por hospitais e vamos receber demagogias? Será que ninguém tem misericórdia dos pobres? Ninguém tem amigo pobre e nem sofre quando seus amigos  enfrentam filas, filas com dor? Precisando de cirurgia, exames, esperando eternamente. Pagamos nossos impostos, que não são poucos, talvez um dos países em que o imposto é um dos maiores do mundo. E o que temos em troca?

Está na hora de mudar, aliás já passou da hora. Todos precisam de ser ajudados quando estão doentes, quando sofrem e justificativas mais irritam que ajudam. Todas as profissões são assim, se mexemos com as leis, os advogados entram em causa, se queremos construir, os engenheiros e arquitetos planejam, se queremos aprender,  os professores ensinam. Se elegemos  políticos, esperamos o bem comum e não enriquecimentos ilícitos e justificativas vazias.

Bem, continuamos esperando que o amigo Nelson seja logo chamado para a cirurgia, que fique bom e não somente ele, mas todos que estão nesta fila interminável para serem atendidos. Em tempo, quando a noiva atrasada chega, iniciamos a cerimônia, quando chove, a semente desperta e brota, quando vem a chuva de primavera, os pássaros chocam seus filhotes. Pode ser porém que quando chegar a cirurgia,  a enfermidade não esperou. Você vai conseguir dormir com este drama na consciência?

 

Pe. Antônio S. Bogaz (orionita) , doutor em filosofia e teologia

Prof. João H. Hansen, doutor em ciências da religião