Dom Orione no Brasil – Um santo em terras tupiniquins

Por Cl. Clayton Munhoz, orionita

Colaboração de Padre Facundo Mela (Argentina)

 

São Luís Orione foi um santo cujo coração não tinha limites. Seu ardor missionário e caritativo o levou a ultrapassar as barreiras de sua pátria italiana e a se lançar num mundo completamente novo. Nasceu no norte da Itália, na pequena cidade de Pontecurone, em 1872, em uma família pobre, mas muito religiosa. Ainda jovem, numa atitude audaciosa, fundou um pequeno colégio para crianças pobres que, com o passar dos anos e a partir da coragem evangélica de seu fundador, se tornou uma congregação religiosa com centenas de membros. Luís teve então, pela primeira vez, que vencer os limites da sua diocese, expandindo as obras caritativas de sua Pequena Obra da Divina Providência. Todavia, a Itália era pequena para os sonhos proféticos do padre Orione. E se deixando guiar pelos ventos da Providência de Deus, aceitou o convite há anos repetido para se lançar ao mar, enfrentar meses de viagem e enfim desbravar uma terra completamente desconhecida: o Brasil. Rumo a novos horizontes, Dom Orione tinha um só pensamento: “No Brasil não procuro ouro mas seus filhos mais pobres e mais necessitados de Deus”

 

 

Os preparativos

Podemos dizer que a viagem de Dom Orione ao Brasil começou muito antes de seu embarque no navio Principe di Udine, em Gênova. Há anos ele trocava missivas com a Madre Michel, fundadora das Pequenas Irmãs da Providência, que esteve no Brasil por alguns anos. “Gostaria que a Divina Providência me levasse a plantar as minhas tendas no Brasil[1]”, escrevera certa vez. No dia 3 de outubro de 1905, em uma dessas cartas, Dom Orione escreveu: “Estou disposto a ir eu mesmo ao Brasil, quando for necessário e para a Glória de Deus. Não sei a língua, não sei nada, mas a caridade fala uma só língua e todas as línguas..[2].”

Mas foi só em 1913 que os primeiros missionários orionitas foram enviados ao Brasil, mais precisamente à cidade mineira de Mar de Espanha. Foram eles o padre Carlo Dondero, o Ir. Carlo Germano e o Sr. Giulio, um leigo. Os desafios enfrentados por eles não foram pequenos. O irmão Carlo e o Sr. Giulio logo voltaram para a Itália. Outros padres foram enviados e outros tantos problemas foram surgindo. A cada ano, fazia-se mais e mais necessária a presença do fundador. A missão orionita no Brasil carecia da presença firme e profética de Luís Orione.

Dom Orione parte para o Brasil

O porto de Gênova era a posto de embarque de multidões com destino a muitas cidades das Américas. E dentre tantos imigrantes, muitos deles pobres em busca de uma vida melhor na promissora “América”, estava um padre simples, de andar reticente e olhar profundo: Luís Orione. Seu destino era o porto do Rio de Janeiro, a então capital de um país desconhecido, mítico e gigantesco. Na manhã do dia 20 de agosto de 1921, Dom Orione chega à cidade maravilhosa. A partir daí, um mundo novo se desdobra aos olhos do santo da caridade. E a partir de seus inúmeros escritos, relatos e correspondências, vamos acompanhar um pouco a epopeia orionita em terras tupiniquins e o choque cultural que nosso fundador sofreu ao chegar aqui.

Uma nova realidade eclesial

A igreja brasileira no limiar do século XX passava por grandes infortúnios. Grande parte dos problemas era decorrência da grande falência econômica causada pela abolição da escravatura e das dificuldades políticas conexas a esta realidade. Também havia o problema do padroado que atingia sobretudo o clero. Este, por sua vez, era insuficiente para o enorme contingente de fieis. As paróquias tinham extensão territorial tão extensa que hoje formariam dioceses inteiras. Já as dioceses eram tão vastas quanto um estado. Havia milhares de pessoas, especialmente imigrantes, que por anos não tinham a assistência religiosa de um sacerdote.

É importante lembrar também que expressivo setor da hierarquia eclesiástica demonstrava uma postura elitista, privilegiando o trabalho pastoral em meio às classes altas, deixando a missão em meio aos mais pobres e abandonada relegada aos missionários estrangeiros, sobretudo os europeus. Foi por isso que foram oferecidas tantas obras de caridade, como orfanatos e creches para Dom Orione, bem como as regiões mais pobres das grandes cidades.

A primeira cidade onde Dom Orione esteve efetivamente, depois da chegada e breve estadia no Rio de Janeiro, foi em Mar de Espanha, uma pequena cidade encravada nas montanhas de Minas Gerais, a 350 quilômetros de Belo Horizonte. Viajou até ela de trem, partindo do Rio. Ali a congregação mantinha o Instituto São Geraldo – um lar para crianças pobres – e também cuidava da paróquia.

Sua primeira impressão sobre a cidade é narrada numa carta a Dom Sterpi, seu fiel seguidor e futuro sucessor: “Mar de Espanha é linda. Conta com aproximadamente 2500 habitantes no centro e todo o município cerca de 4 mil. O povo é educado, inteligente e muito bom. A igreja é bela, tem uma nave com jardim à frente: digna de uma cidade[3]”.

O fato de quase metade da população de Mar de Espanha residir ainda na zona rural, algo normal do Brasil daquela época, ajuda a compreender a dificuldade da ação pastoral dos padres daquela época. E quando havia um padre disponível, era grande a procura dos fieis, cuja devoção tocou profundamente o coração de Dom Orione. No dia 17 de outubro de 1921, ele escreveu ao então seminarista Sparpaglione: “Tenho pregado em português desde o dia 8 de setembro. Ontem, sendo domingo, eu rezei várias vezes. Celebrei duas missas, uma aqui e outra a dezesseis quilômetros de distância, onde eu chegue às 12:30m num vilarejo onde não há nenhum padre. O padre que era o pároco, já muito velho, foi ao Rio de Janeiro para tratamento e não voltará mais. Todos estavam esperando por mim e quando me viram chegando, começaram a acenar de alegria com seus lenços. Eles estavam esperando lá a manhã toda, pobre povo![4]

O abandono pastoral do povo daquela simples comunidade rural deixou Dom Orione realmente comovido. Mesmo estando há tanto tempo sem um padre, o povo mantinha uma fé acesa, vívida mesmo. E neste sentido, as diferenças da vida eclesial vivida por ele na Itália até então, saltava mais uma vez aos olhos de São Luís Orione. Diferentemente de sua terra natal, no interior do Brasil, uma vez que um padre aparecesse, todos os sacramentos eram celebrados em poucos dias, ou, muitas vezes, num mesmo dia. Até mesmo o fato de ele ter celebrado duas missas, o que pode parecer comum nos dias de hoje, lhe parecia completamente incomum. Conforme escreve na mesma carta, Dom Orione sentiu-se ainda mais motivado a ser um bom sacerdote diante da carência pastoral daquela gente simples:

 “(…)E a igreja deles era tão pobrezinha que fiquei com vontade de chorar, no altar eu jurei uma vez mais ao Senhor que seria um bom padre vendo a fé daquele povo abandonado. A igreja estava cheia, e eles cantavam, e ao som daqueles hinos eu chorei de amor a Deus e às almas, e de dor por ver aquele povo sem um padre que batizasse suas crianças, confortasse seus doentes, abençoasse o túmulo de seus mortos! Eu proclamei o evangelho, eu batizei, fiz as publicações dos casamentos, acolhi suas crianças e visitei seus doentes. Eles ainda me perguntaram se eles poderiam ter missas mesmo se fosse somente pelos dias santos e para os defuntos” Eu espero que eu ou algum outro possa vir”.

Para percorrer as longas distâncias entre uma comunidade e outra pelo interior de Minas Gerais, o meio de transporte utilizado pelos padres eram os cavalos. Com eles, as vastas montanhas mineiras eram cortadas em cavalgadas que podiam levar dias. Dom Orione nutria por isso com certa curiosidade. A abundância de pasto e a maneira como se criavam os animais aqui não passaram despercebidas. “Aqui nós temos seis ou oito cavalos, e nós viajamos neles. Nossos cavalos, como o gado aqui, não tem um estábulo ou um celeiro, eles ficam no campo dia e noite, e pastam na grama da nossa chácara, que é enorme[5]”.

Mas o que tudo isso imprimiu no coração já dilatado de caridade de São Luís Orione? A resposta é obviamente simples. Movido por sua fé sem limites na ação da Divina Providência, ele não hesitou em ter a coragem de se lançar ainda mais profundamente nesta grande aventura que era o Brasil. Uma das faces mais chocantes da pobreza em toda a América Latina daquele tempo era, sem dúvidas, a situação em que se encontravam milhares de crianças que viviam nas ruas, especialmente filhos de ex-escravos. Era tal a quantidade de crianças abandonadas que dá-las um lar era um dos trabalhos mais urgentes de qualquer um que desejasse fazer caridade no país. A pobreza extrema no Brasil desde o final do século XIV até meados do século XX era resultado do horror da escravidão e da existência dos grandes latifúndios. Com o fim da escravidão, a mão de obra negra foi substituída pela dos imigrantes, especialmente italianos. Eram, portanto, dois grandes contingentes de pessoas que precisavam de ajuda. E a estes dois grupos a mão da Divina Providência levou Dom Orione e seus seguidores.

Dom Orione tinha firme propósito de trabalhar pelo Brasil. De estar ao lado dos mais pobres e abandonados de nossa pátria. E como um louco da caridade, munido de poucos recursos tanto financeiros como humanos, não teve medo de dar passos enormes, compreendidos somente pela luz da fé.  Eram os pobres que Dom Orione queria. “Nós estamos no Brasil pelos pobres e para os pobres[6]” E foi pelos pobres que começou a abrir obras de caridade em São Paulo e no Rio, tanto para os meninos negros como para os imigrantes.

Numa carta ao seu bispo, Dom Grassi, Dom Orione já indicara que havia compreendido a que  tipo de apostolado deveria se dedicar no Brasil. “No Brasil eu trabalho duro tirando as crianças da rua – e há tantos deles![7]” No Rio de Janeiro, por exemplo, houve 3 tentativas de se abrir casas para acolher os jovens órfãos, até que no dia 15 de outubro de 1921 foi aberta a Casa da Preservação (Instituto de Preservação de Menores) que já contava com 260 rapazes e um setor feminino. Alguns anos antes, em 1914, os padres orionitas já haviam aberto em Mar de Espanha um orfanato escola dedicado à Nossa Senhora de Lourdes. O padre Dondero, naquela época, escrevera a Dom Orione relatando que “já estavam se ajuntando muitos meninos negros. São filhos de negros oriundos da África como escravos para o Brasil[8]”.

Em São Paulo, Dom Orione se deparou com uma cidade gigantesca. “São Paulo é a Milão do Brasil[9]”, escreveu certaz vez, comparando as duas capitais financeiras. E a grande quantidade de imigrantes o impressionou. “Eu estive em São Paulo e o Arcebispo me pediu que cuidasse dos imigrantes italianos do Braz, um bairro da cidade completamente formado de italianos. Os italianos de São Paulo devem ser pelo menos uns 200 mil; esta é a maior colônia que a Itália tem fora da nossa pátria. No Braz os italianos nascem e morrem sem os confortos da nossa fé. Eu confio que a Divina Providência nos auxiliará; Eu não posso, não devo dizer não”[10].

A realidade multirreligiosa e multicultural brasileira foi assumida por Dom Orione com um espírito de abertura e carinho. Sua relação com essa diversidade estava em função de sua profunda preocupação com os sujeitos da cultura, ou seja, Dom Orione se abriu à cultura brasileira amando o seu povo, sendo mais um junto ao povo pobre e necessitado. E tinha consciência que o carisma da congregação podia agregar valores transformadores desta realidade, especialmente no tocante à dimensão eclesial, à maneira como era feita a evangelização no Brasil. Enquanto abria obras de caridade, Dom Orione pensava além, seu raciocínio era ainda mais profético do que as casas que fundava. “A Pequena Obra não é um mero refúgio para órfãos, mas quer ter visibilidade pública e social. Os seus olhos se voltam ao povo, não parece mais ser suficiente o templo para irradiar no povo o Espírito de Jesus Cristo e do seu evangelho. É preciso descer, ir ao povo, à juventude, aos pobres, aos ignorantes, aos sem fé, aos que sofrem, e viver com eles, cansar-se, trabalhar, sofrer, sentir com eles, para inculcar-lhes o Espírito de Jesus e salvá-los”.

A língua Portuguesa

No mundo globalizado em que vivemos e com as facilidades trazidas pela internet, aprender uma nova língua não é uma das tarefas mais complicadas. No começo do século XX, todavia, era algo que podia demandar anos de estudo e muitos gastos. Por isso era comum que os missionários chegassem numa nova terra sem ter um mínimo conhecimento da língua local. E isso aconteceu com os primeiros missionários orionitas a virem ao Brasil e também com São Luís Orione. A língua portuguesa o deixou fascinado. E enquanto ele esteve aqui, se esforçou em aprender a “inculta e bela” e dedicou dias a decifrar a pronúncia das palavras para suas pregações pelo interior do país.

Dom Orione já sabia da necessidade de se falar português para se comunicar com o povo do Brasil. Ele soube disso através de uma carta enviada pelos primeiros missionários orionitas enviados ao país, ainda nos primeiros meses de sua estadia. A carta era datada de 29 de dezembro de 1913. “Padre Dondero pede que venha ao Brasil qualquer um que saiba português; porque não podemos nos dar por satisfeito já que não há nenhum que saiba[11]”.

Quando veio ao Brasil, ele percebeu que sem saber a língua, pouco se poderia fazer de bem.. Numa carta ao padre Sterpi, escreveu: “Devemos também buscar logo aprender a gramática portuguesa e o vocabulário e estudar = aqui se é inútil se não se sabe a língua para poder ensinar as matérias na classe[12]”.

Em 1921, vendo a necessidade de se pregar em português e de poder se comunicar com o povo mais simples, Dom Orione se esforçou ele mesmo em aprender a nova língua. Falando sobre a missão em Mar de Espanha, Dom Orione disse em uma carta que já era capaz de entender alguma coisa e que, na comunidade religiosa, tudo se fazia em português, ainda que todos os padres fossem italianos: “No refeitório também fazemos a leitura em português, se entende, assim também em português fazemos a meditação e todas as orações e o rosário[13]”.

Tantos esforços valeram a pena. Em poucos meses, com muito estudo, Dom Orione já estava mais fluente na língua. E como relatam diversas cartas, ele se orgulhava e se alegrava com o novo dom adquido. Numa carta ao bispo Dom Leme, do Rio, datada de 3 de setembro, afirmou: “Agora estou estudando português[14]”. Algumas semanas depois, numa outra carta o verbo “estudando” deu lugar ao “aprendendo”, o que indica que ele estava obtendo progresso. Foi a Dom Sterpi, em 24 de setembro de 1921, que ele escreveu: “Estou aprendendo português[15]”.

Mas Dom Orione tinha lá seus truques. Como as oportunidades onde ele deveria se pronunciar em português eram mais comuns do que o tempo para estudar, ele costumava escrever os seus discursos baseando-se na pronúncia das palavras em português mas com os sons da língua italiana. Era a única maneira de falar e ser compreendido sem maiores problemas. Talvez ele até achasse certa graça nisso, pois fazia questão de mostrar nas cartas como driblava os problemas de pronúncia. O seu primeiro pronunciamento em Mar de Espanha foi feito dessa maneira, como mostra o rascunho do dia 18 de setembro:

“Ficu satisfeitu i repùtomi muitu honròsu ò hirmons en Cristu i escoglìdus sitadòus di Mar de Hespagna, di ter puditu ogi por a primeira vez esplicài u santu Evangeliu di Gesù Cristu n’esti vossu formosu i adiantadu i nobri paìs Brasileiru. Eu sempri lembrerèi con satisfasòn i giattansia pur ter faladu a primeira vex en publicû peranti vûs, sitandons ton delicadus i altamenti religiôsus, n’esta grasiôsa sitadi, n’esta vôsa Igregia Matrìs aus pès da Virgen das Mersès….”

Obviamente isso não significava que Dom Orione não soubesse escrever em português. Na verdade, em muitas de suas cartas, escritas em italiano, ele deixava escapar uma ou outra palavra em português. Muito provavelmente aquelas que já usava no dia-a-dia aqui no Brasil. E além de usar as palavras, fazia questão de explicar o seu significado. Numa das muitas cartas ao seminarista Sparpaglione, escreveu: “La chiesa era cheia[16]” Sendo “cheia” a palavra portuguesa sinônimo de “piena” em italiano.

O clima, a fauna e a flora

Talvez uma das maiores dificuldades para um europeu recém chegado no Brasil é adaptar-se ao nosso clima quente e úmido. Especialmente no caso de Dom Orione que era um italiano do norte (o norte da Itália, fronteiriço com a Suiça e território dos Alpes é a região mais fria da Itália, onde o inverno é rigorosíssimo e devido à altitude, tem também um verão mais ameno). O clima era assunto recorrente nas cartas que Dom Orione enviava aos confrades na Itália. E se o calor poderia às vezes fazer mal, poderia do mesmo modo fazer bem a outros. Foi isso que o fundador argumentou numa carta enviada à Itália em 1930. Nela, falando sobre o Padre De Paoli, que estava para viajar ao Brasil e que não estava muito bem de saúde, disse: “Ele, pra dizer a verdade, não está muito bem: está com tosse e chiado no peito (…) acho que se vier ao clima quente do Brasil, ficará melhor [17](…)”

Se o clima quente iria fazer bem ao padre De Paoli que sofria com o frio de Tortona, não chegou a fazer muito bem a Dom Orione mesmo. No meio do verão brasileiro, andando pelas estradas de terra do interior do Brasil debaixo do sol escaldante, vestindo sua pesada batina preta e trabalhando muito, o fundador adoeceu. Um mês depois, relatou o ocorrido ao padre Vicentino Vicente Maria Davani, reitor do Santuário de Nossa Senhora de Lujan (Argentina): “Em dezembro, Nosso Senhor quis brincar um pouco comigo e me dar um presente de Natal: Após três missas, encontrando-me no interior do Brasil, onde faz muito calor e estando muito suado, depois de ter trabalhado em excesso, me veio uma febre forte que só me permitiu voltar à viagem às 21 horas. Mas é só ver isso como um presente do Senhor que já se faz algum bem para a alma”[18].

Numa outra carta, dessa vez ao bispo de Tortona, Dom Grassi, Dom Orione relata algumas das curiosidades acerca das altas temperaturas do Brasil e as consequências destas na fauna local “(…) com o calor ardentíssimo do Brasil, e nesta temporada de verão, pois aqui estamos bem no meio do verão, é no início de fevereiro que começam a plantar as videiras, embora haja pouca colheita de uva nesta região, porque as uvas e as vinhas são facilmente destruídas por grandes formigueiros[19]”.

Mas não foram só as formigas que chamaram a atenção de Dom Orione. A rotina do Brasil rural dos anos 20, especialmente no interior de Minas Gerais, era ditada pelo vai e vem dos cavalos, cuja importância como meio de transporte era, obviamente, gigantesca. Todas as paróquias tinham seus próprios cavalos, sem os quais não se podia visitar com alguma praticidade as dezenas de comunidades espalhadas por áreas enormes, a maioria em pequenos vilarejos. Foram várias as cartas onde Dom Orione escreveu algo sobre os cavalos, especialmente durante seu tempo em Mar de Espanha, pois São Paulo e Rio já contavam com um sistema de bondes e haviam carros e ruas pavimentadas.

Num rascunho sobre a missionariedade, num texto um tanto quanto poético, Dom Orione disse: “Eu os vejo na minha frente, andando não só em São Paulo entre os nossos compatriotas (…) mas no interior do Brasil, em Minas Gerais a cavalo com uma barba grande, a pele bronzeada e um crucifixo no peito como os partidários da fé e da caridade[20]”.

 

Os alimentos

Longe de sua terra natal, num país imenso, com um clima tão diferente e com tantos desafios pela frente, Dom Orione foi aos poucos se adaptando ao Brasil. A vida que ele levou por alguns meses em Mar de Espanha e região, no interior de Minas Gerais, foi um verdadeiro mergulho na cultura do Brasil rural, ainda pouco desenvolvido e bastante rústico. Em suas andanças pelas estradas de chão, cortando as montanhas de uma das regiões mais bonitas do Brasil, o fundador foi acolhido por muitas famílias. E como era costume da época, fez suas refeições nas casas que o acolhiam e pôde, assim, experimentar a famosa comida mineira.

Os registros que Dom Orione fez sobre a culinária local são poucos. Em duas cartas, cita alguns dos produtos típicos locais com certa curiosidade. Fala das fazendas de café e cana-de-açúcar, das plantações de arroz e milho. Mas o que lhe chama a atenção de verdade é a mandioca, um vegetal inexistente na Europa. Numa carta, ele escreve “há a mandioca, qual a qual se faz o pão, após tê-la reduzido em farinha ou uma massa com a qual os pobres se alimentam[21]”, ou, “que é o alimento quotidiano dos pobres[22]”. Indubitavalmente Dom Orione lamentou profundamente ao ver essa situação precária das famílias do povo por não terem nada para comer senão mandioca. Despertava, assim, em seu coração, de abrir mais casas, orfanatos e institutos de educação profissional, para promover a juventude e vencer o ciclo da pobreza a qual estavam submetidos os descendentes de africanos, os caboclos e os imigrantes.

O Brasil

Dom Orione esteve em três estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Num tempo onde não haviam tantas facilidades com relação aos meios de transporte, Dom Orione foi um grande missionário. Caminhou muito. Viajou de trem. Andou a cavalo. Usou carros nas grandes cidades. Ele pôde contemplar com seus próprios olhos a grandeza do país. Por mais de uma vez, usou adjetivos como “grande”, “enorme[23]”, “quase do tamanho da Europa[24]” para descrever o nosso país aos confrades italianos, talvez na tentativa de expressar o quanto o Brasil lhe havia surpreendido. Numa outra carta, falando do Mato Grosso – a região brasileira para a qual sonhava em mandar missionários – o descreveu como “uma região de missão com duas vezes o tamanho da Itália[25]”.

Dom Orione não demorou muito para notar que as longas distâncias entre as cidades brasileiras acarretavam sérios problemas de comunicação. E nas pequenas cidades a situação era ainda pior. Em decorrência destas limitações, Dom Orione recebia a resposta de suas cartas com certo atraso. E sabia que suas cartas poderiam atrasar também. Numa carta a um bispo, escreveu: “O seu telegrama me foi enviado a mais de 500 quilômetros de distância daqui e com muito atraso. E mesmo que eu pudesse lhe responder imediatamente, eu não conseguiria porque o Brasil não é a Argentina. Então, perdoe-me o atraso e, desculpe-me, se tenho que ser breve[26]”.

Aparte das longas distâncias e dos problemas do interior, Dom Orione sabia da importância estratégica de duas cidades que não distavam muito uma da outra, e que portanto deveriam ser elencadas como fundamentais para o desenvolvimento da Pequena Obra da Divina Providência no Brasil: O Rio de Janeiro e São Paulo.

Quando da ocasião da abertura da paróquia de Niterói, comentou: “Na América (no Brasil) foi aberta a casa de Niterói. O porto do Rio pode receber toda a frota do mundo. O Rio é duas vezes capital. Capital federal e capital do estado do Rio. São Paulo é a capital do estado de São Paulo[27]” O Rio só perdeu o posto de sede dos poderes federais quando Brasília, a atual capital federal, foi construída em 1960. Mas

São Paulo, já uma metrópole na primeira metade do século XX – a segunda maior do país – exerceu grande fascínio sobre Dom Orione. E seus planos para o desenvolvimento da congregação na cidade eram igualmente grandes. A primeira paróquia ofertada à Dom Orione era uma localizada no bairro do Brás, pois este concentrava o maior número de imigrantes italianos da cidade naquele tempo. O plano, todavia, não vingou. E a uma paróquia orionita foi criada no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo, também repleto de italianos, especialmente vindos da Calábria.

Houve também a oferta de um grande terreno no Ipiranga, bairro paulistano que naquele tempo se avistava de longe, por estar situado no alto do morro onde corre o rio em cujas famosas margens foi declarada a Independência do Brasil. E a importância do local refletiria na grandeza da obra que Dom Orione planejava construir ali. Numa carta ao Padre Montagna, escreveu: “Encontrei um senhor que me ofertou em doação um dos seus melhores terrenos, hoje fora da cidade, mas com o bonde elétrico se pode chegar lá, e está sobre uma colina histórica, porque lá foi proclamada a Independência do Brasil, um quadrilátero de terra que é 216 por 242, circulado por ruas, e já com a tubulação de água, e ele está disposto a nos ajudar a construir. A colina se chama Ypiranga e domina São Paulo, como o nosso Castelo domina Tortona; já estão lá em cima outras instituições de Dom Bosco e dos Escalabrinianos, e está perto do museu nacional; este terreno, que hoje vale pouco, valerá milhões. A oferta ainda não foi aceita;  faria ali um Instituto de Artes e Ofícios para as crianças que são mais pobres e abandonadas[28]”.

Em 1927, começava a ser construída no Rio a estátua do Cristo Redentor, no alto do monte do corcovado,  sendo concluída apenas cinco anos depois, em 1931. Dom Orione sabendo da imponência da imagem do Cristo, não hesitou em fazer uma alusão à esta obra no Ipiranga. Para ele, como o Cristo do Corcovado ilumina e irradia fé por todo o Brasil, assim também seu Instituto de Artes e Ofícios o faria[29].

A grandeza destas suas iniciativas mostra que Dom Orione tinha grande afeto pelo Brasil. Ele tinha certeza que a Divina Providência o levaria a fazer da Pequena Obra uma “grande” obra em nosso país. O impulso de seu espírito, assumindo com dedicação as realidades dos mais pobres, dos mais sofridos e miseráveis, como sempre deixava claro, foi a concretização do que Dom Orione tinha de mais profundo: sua fé num Deus todo misericórdia, com bondade materna, onde todos os seres humanos são acolhidos como filhos de Deus. A sensibilidade orionita em acolher os mais pobres é a expressão mais autêntica do Deus revelado por Jesus na famosa parábola do “filho pródigo”.

Amor pelo Brasil

Dom Orione amou profundamente o Brasil, e amou com especial afeição os nossos pobres, pois via no amor aos mais pequeninos um instrumento da missão. E para alcançar seus objetivos, sabia que era preciso o testemunho da caridade. Por isso, enquanto esteve conosco, abriu obras, acolheu crianças, se preocupou com sua educação (chegou até a analisar os currículos escolares locais e fazer sugestões) e com a vida sofrida do povo nas periferias e nas áreas rurais. Porém, ele esteve no Brasil em duas ocasiões por um período de tempo relativamente curto, se comparado ao tempo em que esteve na Argentina e em outros países da América Latina.

No entanto, no breve período em que esteve pisando em nosso chão, bebendo da nossa água e vivendo a vida do nosso povo mais simples, Dom Orione constituiu uma verdadeira afeição por tudo. E fez questão de transmitir esse sentimento em suas cartas e relatos aos confrades da Itália. Soube também reconhecer virtudes e qualidades no nosso povo, bem como algumas limitações, mas sempre como um pai preocupado com o melhor dos filhos. Achava a igreja brasileira mais livre do que a italiana, especialmente por questões políticas. Tudo isso ele escreveu numa carta destinada, provavelmente, à Madre Michel, sua amiga de longa data, responsável por sua vinda ao Brasil. Ele escreve:

“Ajudando-me Nossa Senhora, fiz uma boa viagem, e estou feliz por ter vindo ao Brasil – este maravilhoso país, que pode bem estar num páreo, se não superar em muitas coisas, as maiores e mais poderosas nações do mundo. Nenhum país é mais rico de promessas e de um futuro próspero, nenhum país é mais generoso e invejável que o Brasil. A igreja aqui tem uma grande dose de liberdade aqui em comparação com a Itália, especialmente graças ao ótimo serviço religioso que prestaram aqui os jesuítas. Os bispos brasileiros são dos primeiros do mundo hoje. Et Deo gratias[30]

 Numa carta escrita da Argentina a seu sobrinho Eduíno Orione, que morou no Rio de Janeiro e no Mato Grosso e que muito ajudou os orionitas em seus primeiros anos no Brasil, pois gozava de boa condição econômica, disse: “Não lhe posso dizer quando voltarei ao Brasil: tenho tanto trabalho aqui! (…) Quero lhe dizer que se não puder voltar ao Brasil vivo, voltarei morto, pois ainda morto quero trabalhar muito fazendo o bem![31]

Mas esta não foi a única promessa feita por Dom Orione sobre seu desejo de continuar trabalhando pelo Brasil, justamente por saber que o país prometia muito e que pouco havia sido efetivamente construído durante o tempo em que esteve na América Latina. Era preciso mais. O Brasil podia mais. No entanto, o apóstolo da caridade sabia que não era ele quem fazia. Ele era na verdade um mero servidor da Providência Divina. Por isso, se fosse da vontade de Deus que a Pequena Obra da Divina Providência prosperasse no Brasil, isso aconteceria de uma forma ou de outra. Era, portanto, a fé na ação providencial de Deus que poderia fazer do Brasil uma nação verdadeiramente orionita.

Quando de seu embarque rumo à sua amada Itália, despedindo-se da America Latina, Dom Orione deve ter olhado para a baia de Guanabara, as montanhas do Rio, ter se lembrado das pequenas cidades mineiras, seu povo simples e bondoso, da grandeza de São Paulo e seus incontáveis imigrantes, todos esperançosos de uma vida melhor na América e, mais uma vez, como profeta da Providência, exclamou: “O que não fiz pelo Brasil da terra, o farei do céu!”. E enquanto o navio avançava rumo ao alto mar e a visão da cidade maravilhosa ia se apequenando no horizonte, Dom Orione deveria ter uma certeza no coração, a de que as sementes lançadas em breve frutificariam. E aquelas “tendas da Providência” que ele tanto desejara “plantar no Brasil” se tornariam, cem anos depois, sólidas instituições que acolhem, curam, educam e evangelizam milhões de pessoas Brasil afora, desde as planícies do sul até úmidas florestas do norte.

O país que acolheu Dom Orione já não é mais o mesmo, ainda que ainda seja o Brasil de sempre. Se ele voltasse hoje, ainda encontraria o povo religioso, bondoso, humilde, de riso fácil e que sempre tem um lugar à mesa para um bom padre que vem falar de Deus. Dom Orione passou por profundas experiências no Brasil. E com certeza, ao voltar para a Itália, não voltou o mesmo. Levava consigo a profunda esperança de um povo que, cheio de ouvir promessas, encontrou num simples padre italiano a concretização de uma firme verdade que todos já tínhamos no coração: “só a caridade salvará o mundo”.

 

 


[1] Vida de Dom Orione, p. 215

[2] Sui passi di Don Orione, p.215

[3] Scritti 14, 89

[4] Lettere I, pp. 292-293

[5] idem

[6] G. Papasogli, Life of Don Orione, capitulo 35, p. 305

[7] G. Papasogli, Life of Don Orione, capitulo 36, p. 305.

[8] Nas terras do Pau Brasil, p. 218

[9]

[10] ibidem

[11] Reunioni p. 29, 17 de agosto de 1914.

[12] Carta a Don Sterpi, Mar de Espanha. 10 de setembro de 1921.

[13] Carta ao então clérigo Sparpaglione. Mar de Espanha, 17 de outubro de 1921.

[14] Carta a Dom Sebastião Leme, Mar de Espanha, 3 de setembro de1921.

[15] Carta a Don Sterpi, Mar de Espanha, 24 de setembro de 1921.

[16] Carta ao então seminarista Sparpaglione. Mar de Espanha, 17 de outubro de 1921.

[17] Carta ao padre Carmelo Putorti. Tortona, 7 de Janeiro 1930. Scritti 43, 031 e 43, 34.

[18] Carta ao padre Vicente Maria Davani. Rio de Janeiro, 25 de Janeiro 1922. Scritti 51, 149 e 51, 252

[19] Carta ao bispo de Tortona, Dom Grassi. Mar de Espanha, 1 de Janeiro de 1922. Scritti 45, 177

[20] Rascunho, sem data nem local. Scritti, 75, 253 e 75, 288.

[21] Carta escrita em 27 de Agosto de 1921. Dom Orione e a América do Sul, p. 36

[22] Carta ao Pe. Sterpi. Mar de Espanha, 1 de setembro de 1921. Scritti 14, 68 e 14, 089.

[23] Carta à Madre Michel. Queluz (Minas) 2 de outubrode 1921. Scritti 50, 110.

[24] Notas do encontro celebrado em San Oreste, 15 de agosto de 1929. Riunioni 87.

[25] Carta ao seminarista Sciaccaluga. Victoria (Argentina). 20 de outubro de 1934. Scritti 27, 188.

[26] Carta a um bispo ou a um monsenhor, provavelmente escrita em 1936. Scritti 51, 109 e 51, 187.

[27] Notas de um encontro celebrado na tarde de 27 de agosto de 1930. Riunioni 101.

[28] Carta ao pe. Montagna. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1921. Scritti 21, 100.

[29] Carta a Dom Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de São Paulo. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1922.

[30] Carta a uma boa filha de Deus, (provavelmente, Madre Michel). Brasil (sem local específico). 28 de setembro de 1921. Scritti 50, 100 e 50, 152.

[31] Rascunho (sem data nem local). Scritti 80, 127 e 80, 200.