Deus não se cansa de estender a mão: a teologia da misericórdia segundo o Evangelho de Lucas

“Deus não se cansa de estender a mão”: a teologia da misericórdia segundo o Evangelho de São Lucas

 

            Por: Cl. Renaldo Elesbão de Almeida

 

Jesus é a mão de Deus. Deus não se cansa de estender a mão, afirma o papa Francisco na Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que iniciará no dia 8 de dezembro de 2015 à 20 de novembro de 2016. O papa inicia a Bula Misericordiae Vultus (rosto da misericórdia) constatando que Jesus é o rosto misericordioso do Pai. Isso é ratificado no Evangelho de São Lucas do qual vivenciaremos a partir deste ano litúrgico que se inicia com o 1º domingo do advento. Lucas, com certeza, é o evangelista da alegria. Para o Evangelista Jesus é a Boa Nova, é o Evangelho vivo que atua na história da salvação. Por isso, a miséria (condição, limites) humana e o coração de Deus se encontram.

Nós não podemos, com isso, perder a oportunidade de “fazer o bem sempre, e a todos”. Pois, “Somente a Caridade salvará o mundo” e salvaremos o mundo instaurando tudo em Cristo. Sendo “Servos de Cristo e dos pobres” na contemplação e na ação impregnaremos a fé e a Caridade em todas as camadas sociais com a Luz e a alegria do Evangelho. Seremos neste ano, da misericórdia, o rosto de Cristo como Cristo é de Deus. Emerge daí uma atitude intropática como possibilidade ética ante às pessoas humanas. Porque “O ‘próximo’ não é aquele que ‘eu amo’. É todo ser que passa perto de mim”, afirma Edith Stein. Assim, não posso desviar o meu rosto do rosto alheio. Nesse sentido, o rosto do alter ego implica responsabilidade. É ele quem me julga (cf. Mt 25,32-45). Eis, o centro da fé cristã. O mandamento do amor exige responsabilidade e atitude ética.    

Deus sendo amor é puro contato porque seu modo de amar não separa ágape (transcendência) e eros (imanência) (paixão, afetividade, amabilidade, sensibilidade). Nisso consiste a revelação. A esse respeito percebemos, às vezes, no mundo um eros sem ágape e, infelizmente, na Igreja um ágape sem eros. A paixão pelo Reino do Pai levou Jesus a tomar a firme decisão de ir a Jerusalém (9,51).  Sem paixão não há evangelização. Como levar Jesus, a boa notícia, sem fogo, sem o Espírito (cf. FRANCISCO, Evangelli Gaudium). Pois, “Onde estão os religiosos, há alegria” (FRANCISCO, Paulus, 2015, p. 10). O poder de Deus triunfa no amor misericordioso. O Reino de Deus é o amor de Cristo nos corações dos cristãos. Só amor confere a pessoa humana o título de cristão. Lucas apresenta Maria (1, 26-56); as mulheres (7,36-50; 8,1-3); o bom Samaritano (10,29-37); o Semeador (8,5-15); Marta e Maria (10,38-42); a ovelha perdida e o Pai misericordioso (15,1-32); o rico e o pobre Lazaro (16,19-31); a Juiz iníquo e a viúva perseverante (18, 1-8); o fariseu e o publicano (18,9-140); Zaqueu (19,1-10) e os discípulos de Emaús (24,13-35) para narrar a presença de Deus na vida de seu povo. Ele faz uma historiografia sagrada. De fato, a Palavra de fez carne, história. A Palavra em Lucas é performativa. Ela realiza o que significa. Em Lucas “a realidade é superior à ideia” (FRANCISCO, 2013, n.231).

São Lucas é o autor do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos. Contém a teologia da misericórdia que estende de geração em geração até os confins do mundo (1,50). Os judeus e gentios são o Teóphilo, ou seja, os amigos de Deus, os destinatários (cf. Lc 1,3;Atos 1,1). É, decerto, uma teologia inclusiva e difusiva. Todos são chamados a justificação pela fé em Cristo. Não há mais separação entre Judeu e gentio. Jesus é a Palavra misericordiosa do Pai que une. O Pai é misericordioso e age com amor. Sua justiça é com equidade e o amor sempre prevalece. Porque ele espera sempre. Por isso, “comamos e festejemos” (15,23). Jesus sendo o bom pastor procura a ovelha, a moeda e o filho.

O capítulo 15 de Lucas é o centro da sua teologia. As três parábolas resumem o mistério do amor triunfante de Deus pelos homens. Lucas é o evangelista da festa! Os personagens estão sempre alegres festejando e comendo. Jesus acolhe os pecadores, gentios, mulheres, crianças, os pobres, e os ricos. A salvação é universal e pertence a todos, pois é Deus quem salva. Nosso participação é nosso engajamento pela fé.  

Os apóstolos em atos são vocacionados a testemunharem a Palavra salvadora em Jerusalém, na Judeia, na Samaria e até os confins da terra. Assim, a missão de Jesus (Lc 4,18-19) é assumida pelos seus seguidores (Atos 1,8).

O centro do Atos dos Apóstolos é o capítulo 10, a cena da descida do Espírito Santo na casa de Cornélio que sendo centurião piedoso acolhe Jesus a boa nova. Porque segundo Pedro “Deus não faz acepção de pessoas” (v.34). Em Pedro acontece a acolhida aos gentios. Paulo já havia intuído a vontade de Deus porque o Espírito tinha sido derramado também sobre os pagãos. O protagonista de Atos é o Espírito de Jesus que batiza a todos. A circuncisão agora é feita no coração dos que aceitam Jesus, o Cristo. É, portanto, o Espírito que confere os novos cristãos. Porque ungidos como Jesus se tornam um povo sacerdotal, reis e profetas (cf.Lumem Gentium, n.10). Em Atos a Igreja se torna universal porque o Espírito “sopra onde quer… não sabe de onde vem nem para onde vai” (Jo 3,8). A Igreja se realiza em saída atrás dos feitos do Espírito. É o Espírito que confere a catolicidade da Igreja na comunhão.  

Para Lucas Jesus é proximidade de Deus na história de Israel. A promessa feita a Abraão é realizada no nascimento de Jesus. Tal nascimento se manifesta na história. A teologia de Lucas é a da Misericórdia (Pai) agindo pela Palavra (Jesus) (cf. Lc 6,36). Porque Deus age com misericórdia através de Jesus a salvação acontece a todos. A teologia de Lucas nos Atos dos Apóstolos é difusiva (cf. Atos 1,8). E segue o programa de Jesus em Lucas 4,18-19. A Palavra é o próprio Jesus porque ele salva e nele se cumpri a promessa feita a Abraão. Maria, em seu Magnificat, ratifica a Promessa, quando diz que “Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias” (Lc 1, 52-53). Agora, e a hora dos pobres e excluídos. Porque todos são filhos de Abraão não mais pela circuncisão, mas pela fé em Jesus Cristo. Estamos no Kairós, um tempo messiânico!

No Evangelho de Lucas Jesus é a Palavra de libertação. O Espírito Santo é o fogo impulsionador da missão de Jesus e dos Apóstolos (cf. Lc 4,18; Atos 2,1-13). Jesus, portanto, é abertura e acolhimento. O papa Francisco é sinal dessa verdade. O futuro do cristianismo é o diálogo sincero entre as diversas expressões culturais e ideológicas. É verdade que a Verdade é a comunhão entre as partes. O Espírito Santo atesta a Verdade na relação das diversidades. A Verdade não é unilateral. É ele quem santifica a Igreja (cf. Lumem Gentium, n.4). A Verdade estar na relação livre e, por isso, a verdade liberta (cf. Jo 8,32).

Participação é a vivência que confere a presença do Espírito Santo. Nesse sentido, o papa Francisco propõe uma descentralização da Igreja. Uma Igreja centrada em si mesma não é Igreja de Cristo. A Igreja é católica quando vive em comunhão. Na Igreja, os batizados são livres e, por isso, participam.

A misericórdia é o modo de agir dos batizados porque é a experiência fundamental. Quem é colhido só pode acolher. Quem vive o amor só pode amar. Movidos pela intenção do papa Francisco para este ano da misericórdia, somos vocacionados a sermos “Missionários da Misericórdia” de Deus, sempre de mãos estendidas àqueles caídos pelo caminho. Ver, mover-se, aproximar-se, e cuidar são os verbos de quem viu e experimentou a misericórdia do Pai em sua vida (cf.Lc 10,29-37). Fiquemos atentos! A aparência não é o real (cf.FRANCISCO, 2013, n. 62). Pelo Espírito, Cristo é do mundo e mundo é de Deus. A Igreja, por sua vez, é católica porque é esposa de Cristo.

Jesus foi o bom samaritano. Agora, “Vai, e também tu, faze o mesmo” (Lc 10,37). Basta isso!