Caim, onde está teu irmão?
Renaldo Elesbão
Henrique Gama
Abel é o filho mais novo de Adão e Eva. Caim seu irmão cultivava a terra enquanto Abel era pastor de ovelhas. Ambos ofereceram ao Senhor seus dons. Deus se agradou da oferta de Abel e não se agradou da de Caim. Quem é Caim? Quem é Abel?
É preciso desidentificar-se de si mesmo para ver as coisas a partir delas mesmas. Assim, nos acordamos de nós mesmos. “Despertar é abrir os olhos para a realidade de que não somos aquilo que acreditamos” (MELLO, 2009, p.33). A capacidade de amar, com isso, corresponde a abertura para dar e receber. Pois, quem oferece deve estar aberto a receber. É gesto de humildade e, portanto, de humanidade reconhecer que somos seres de carências.
Pois, é noção enganosa pensar que não precisa de ninguém. Porque “não existe clarividência maior do que a do amor” (MELLO, 2009, p. 41). Segue daí que o amor é a beleza do ser porque Deus é amor. Segundo Edith Stein o ser humano isolado é abstração, isto é, não existe concretamente. Nós existimos na medida das relações. Assim, Jean-Paul Sartre tinha razão quando afirmava que somos o que fazemos de nós. São nossas escolhas relacionais que nos constitui. Nesse sentido, John Powell nos diz que “está na moda perguntar: Quem sou eu? Não há um ‘eu verdadeiro’ dentro de mim. Eu sou aquilo com que estou comprometido”.
Na verdade o ser humano é relação porque é pessoa. A finalidade da formação do humano é a pessoa. Segundo Mounier a pessoa deve exprimir-se face à face. “A palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prosopon: aquele que olha de frente, que afronta” (MOUNIER, 2004, p.67). E ainda, “ser pessoa quer dizer ser livre e espiritual” (STEIN, 1998, p.141). Há uma espiritualidade pessoal que significa estar consciente de si mesmo (subjetividade) e aberto aos outros (intersubjetividade). Essa liberdade de si para si é a peculiaridade do indivíduo pessoal. Por isso, Stein afirma que “o homem pode e deve formar a si mesmo” (STEIN, 1998, p.143). Por isso, à pergunta do Senhor “onde está o teu irmão?” ainda ecoa em nossos corações. Somos responsáveis pelo próximo, pois a amar a Deus e o próximo constitui um só amor (cf. Lc 10, 25-27).
A minha individuação acontece quando emerge empaticamente o outro semelhante a mim. “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma companheira que lhe corresponda” (Gn 2,18). Então, a relação interpessoal se define pela correspondência entre eus, isto é, semelhantes. Por isso, a empatia é relação fundamental e sui generis. Ela principia as relações interpessoais e inicia desdobramentos relacionais de simpatia e antipatia. De fato, a empatia é uma possiblidade ética.
Que vivência experimentou Caim ao ver Abel sendo preferido pelo Senhor? Inveja. Caim não reconheceu Abel e sua totalidade, ou seja, em suas qualidades. Não o viu como irmão. Na verdade é preciso gozar com os dons de Abel. Pois, viver em plenitude é gozar. “Toda relação da subjetividade com o mundo acontece na forma de fruição, como alimento” (PAULA, 2007, p.15). Não havia comunhão entre Caim e Abel porque não existia comunicação. Desse modo, “a imaginação substitui os fatos, quase sempre distorcendo-os” (POWELL, 2016, p.13).
Entretanto, os dons de Abel são reais e alimentos para nossa alma. “É preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade” (MOUNIER, 2004, p.66). Caim teve inveja porque era faminto, isto é, era egoísta. Por isso, “Caim ficou muito irritado e com o rosto abatido” (4,5). Então, a inveja deixa a pessoa irritada e atrofiada. Ela traz tristeza pelo melhor do outro. Sabemos que estamos com inveja quando ficamos tristes com o sucesso do irmão.
Que sentimento experimento com a alegria de Abel? Na verdade os sentimentos nos “define”. Não são as ideias que nos definem, mas os sentimentos vivenciados em confronto com o rosto dos outros. O que sinto quando vejo Abel? A pergunta, quem sou eu é respondida com a pergunta o que sinto diante dos outros. Sou, com isso, o que sinto e não o que penso ou que pensam sobre mim.
Caim sentiu irritação e ficou triste como o rosto abatido com a oferta de Abel. O corpo fala da interioridade. O corpo é o sacramento do mistério da pessoa, ou seja, o corpo é a epifania do indivíduo pessoal. Por isso, ele exprime a interioridade. “Por que estás irritado e por que teu rosto está abatido?” (4,6). Como dominar a inveja? Dominando a si mesmo. Dominar-se significa se alegrar e se abrir ao próximo. Com isso, Abel se torna um amigo único. “Ela era só uma raposa parecida com cem mil outras. Mas nos tornamos amigos, e agora ela é única no mundo […] Pois é ela a minha rosa” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p.72).
O sentimento de inveja cega e forma o desejo de sair ao campo para matar o outro. Na verdade o outro remete a alguém distante. Só a concepção de que Abel é irmão é que constitui a proximidade relacional. Urge, por isso, que a pessoa esteja em comunhão interpessoal. A “comunidade não absorve a pessoa, pois é comunidade de pessoas” (BELLO, 2015, p.88).
“Caim se lançou sobre seu irmão Abel e o matou” (4,8). Caim matou Abel por inveja porque não pode ser melhor que ele. Mas, não era questão de ser melhor, mas de oferecer o melhor. Esta é a lei: quem esconde perde o que tem (cf. Mt 25,24-29).
Quem é Caim? Caim são aqueles que tem medo de investir o melhor de si mesmo e sempre dar os restos. Caim é medíocre que se contenta com pouco. Caim é o invejoso que está sempre irritado e triste com Abel. Caim nunca presta atenção em Abel porque ele se basta. Quem ama presta atenção e cuida. É, pois, preciso perder tempo com Abel. Porque “é o tempo que você perdeu com sua rosa que a torna tão importante” (SAINT-EXUPÉRY, 2015, p. 73).
Caim finge que não sabe onde Abel está. Porque ele o matou ao invés de matar sua própria inveja. Amar é gesto pascal. Exige uma passagem de si para o outro. Matamos quando ignoramos. Existir interpessoalmente exige o reconhecimento intersubjetivo. Há, dessa maneira, duas formas de matar e de morrer. Matamos quando fingimos que não vemos. Mas, também morremos quando nos irritamos e nos entristecemos com Abel.
Quem é Abel? Abel é aquele que ama desinteressadamente. É aquele que tem a coragem de oferecer o melhor, quem não esconde os talentos, quem se alegra com o bem de Caim. Abel é aquele que é livre para morrer por causa de sua oferta. Abel é o inconformado, (não o perfeccionista), com o pouco. Ele quer sempre mais e quer o melhor. Jean-Paul Sartre afirma que o homem é escolha. Queres ser: Caim ou Abel?