Duas ordens e uma afirmação: "Coragem! Sou eu. Não tenhais medo"

Por cl. Renaldo Elesbão, orionita

 

Esta foi o cerne do evangelho do 19 domingo do tempo comum. Como sempre a Palavra de Deus nos impele a uma vida densa de sentido. A bíblia é o livro que ultrapassa o espaço e o tempo, pois seu significado é constitutivo da vida humana, por isso, a Palavra de Deus é sempre atual. Ela se refere ao homem de ontem e de hoje. Graças ao seu sentido ontológico ela pode constituir a antropologia universal.

A bíblia é um livro não simplesmente feito de fatos históricos, mas também de fatos teológicos. Isso permitiu a ela ser sempre atual. O fato teológico é dinâmico, mas sem relativismo. É a esfera do mistério divino cuja dinâmica não se deixa fluir no mundo, mas o concebe constância e, consequentemente, estrutura tanto para a pessoa humana quanto para a história.

A categoria Reino de Deus é a soma das obras advindas do Pai, a saber: paz, justiça e amor. Todos estes elementos constitutivos do Reino são vistos sob a ótica de Deus e não do homem. Assim, a paz é fruto da justiça cuja via é o amor. Papa Francisco no ângelus do dia 10 de Agosto exortava: “Tudo o que ofende gravemente a Deus e ofende gravemente a humanidade. Não se pode ter ódio em nome de Deus! Não se faz guerra em nome de Deus”. No mundo de hoje isso se apresenta de forma gritante. A humanização passa pela paz, pela justiça e pelo amor. Amor no seu sentido mais profundo, isto é, ágape sem oposição ao Eros, evidentemente.

Bem, para início de reflexão do evangelho proposto de Mateus 14, 22-33 precisamos ter em mente alguns pontos de suma importância. A barca é Igreja; outro lado do mar é a missão ad extra, para os confins da terra, ou seja, eles deviam ir para fora dos muros de Jerusalém, para os gentios. (Esta reflexão não tem caráter teológico, em seu sentido rigoroso, mas quer transmitir uma experiência existencial de fé).

O mar é o mundo instável e inseguro com suas supressas adversas. A oração a sós é a necessidade de separação do mar (mundo) para voltar para ele com segurança espiritual. A barca longe da terra indica que a Igreja estava distante das seguranças pessoais. O Barca agitada aponta para as tribulações das ondas do mundo que lhe é contrário a Boa nova, por exemplo, a guerra em oposição a justiça, o ódio em oposição ao amor, etc.

Vento contrário pode simbolizar a “cultura” imaterial do aborto, da eutanásia, ou ideologias a favor da morte como atualmente vimos a tragédia do nazismo, as guerras. O vento a favor, por sua vez, propicia a Palavra cair em terra e não na beirada da terra entre as pedras, ou no caminho. Jesus foi até os discípulos andando sobre o mar, ou seja, Jesus caminha no mundo a fim de construir o Reino do Pai e vai até os seus para caminhar juntos como, posteriormente, fez com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35).

Os discípulos não reconheceram Jesus achando que era um fantasma, isto quer significar que Ele se encontrava entre os mais simples e desconhecidos. Verdadeiramente, Dom Orione tinha razão quando afirmara que: “No mais miseráveis dos homens brilha a imagem de Deus”. Quando eles avistaram andando sobre o mar (sobre a instabilidade do mundo) eles ficaram apavorados e gritaram de medo por causa do desconhecido. O medo é segue o desespero.

Nesse sentido, São João da Cruz afirma que: “Para chegar a Deus, há de ir antes não compreendendo que compreendendo, isto é, há de trocar o comutável e compreensível pelo incomutável e incompreensível” e mais adiante citando o salmo 38, 7 diz que “Todo homem em vão se perturba” (Subida do monte Carmelo. Livro III, cap. V. n. 3 e VI. n. 3). O medo também abaixa a imunidade trazendo graves consequências para a saúde, pois o coração bate mais forte e daí ele precisa de mais sangue, mais oxigênio, mais energia enfim toda a pessoa fica à mercê dos impulsos sem devida reflexão própria da pessoa humana cuja função é separar os dados e avalia-los a fim de escolher. Portanto, o medo nos priva da escolha.

Noutras palavras, o medo estabiliza a pessoa humana a mero animal, sem uso da liberdade. O medo deixa o homem atado na imanência sem transcendência alguma. Nos escondemos dentro de nossas almas (egoísmo). Ficamos de portas fechadas como fizera os discípulos após a morte de Jesus. “…estando fechadas as portas onde se achavam os discípulos, por medo dos judeus, Jesus veio e, pondo-se no meio deles, lhes disse: ‘A paz esteja convosco’” (Jo 20, 19). “É sempre uma aventura responder ao chamado de Deus, porém, Deus merece esse risco” (STEIN, Edith. A loucura da cruz. 1998, p. 28).

Às vezes, o medo nos deixa anêmicos espiritualmente, sufocados como sem oxigênio e, por isso, urge “sair da sacristia” como disse Dom Orione. Apelo confirmado no Concílio Vaticano II onde São João XXIII pediu para abrir as portas da Igreja para olhar o mundo, experiência de “Novo Pentecoste”: "Abrir as janelas para que os ventos da História soprassem a poeira do Trono de Pedro". Após o Concílio nasceu documentos expressivos desse novo modo de compreender o mundo (Lumen Gentium) e como o jeito de se relacionar com o mundo (Gaudium et Spes). Atualmente, o papa Francisco nos exorta:

… prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero um Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos…, espero que nos mova o medo de nos encerramos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6, 37) (Evangelii Gaudium. n. 49).

Respondendo a esse apelo evangélico e do Santo Padre: “Dai-lhes vós mesmos de comer” precisamos sair. Deixar o cântaro e sair. Ora, o que experimentaram os discípulos se não essa “vontade” de ficar nas estruturas? Fechados em si mesmos para não se sujar no mundo? Isso é sinal de insegurança pessoal. Medo imaginário é sinal de falsa liberdade, de prisão. Solta-te de ti mesmo e dos outros e serás livre. “Causa pena ver a alma, cuja capacidade é infinita, reduzir-se, pela sua fraqueza e inabilidade sensível, a tomar seu alimento apenas por migalhas através do sentido” (CRUZ, S. João da. Subida do monte Carmelo. Livro II, cap. XVII, n. 8).

Quem é livre passa pela lama do mundo, se surja, mas depois se lava, ou seja, pode atravessar todos os lugares existenciais sem olhar para traz querendo voltar, “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não serve para o Reino de Deus” (Lc 9,62). “… pois foste

O que fez Jesus quando viu Zaqueu? O que ele fez com a pecadora que estava molhando seus pés de lagrimas? O que fez Jesus com a Samaritana? Será que se escondeu dos pecadores públicos? Não foi Jesus da Galileia, Samaria até Jerusalém anunciando que Deus é Pai de todos? Não é de Jerusalém que nós devemos ir até os confins da terra anunciando o querigma? “Aquele que levava a Palavra, agora é a Palavra levada por suas testemunhas (o querigma cristão)” (CARMO, Solange M. do. Jesus: Boa-nova universal de Deus. 2014, p. 69).

“Coragem! Sou eu. Não tenhais medo”. Por que coragem e não antes sou eu, Jesus? Será porque eles sabiam, entre penumbras, que era Jesus e a palavra seria coragem, sou eu? Coragem ante o medo. Coragem ante os fantasmas, isto é, o desconhecido. Coragem ante a decisão dos vários caminhos que se nos apresentam, pois:

Para caminhar em suas veredas e se unir a Deus é, pois, necessário cegar-se voluntariamente em relação a todos os outros caminhos. Segundo Aristóteles, do mesmo modo que os olhos do morcego ficam cegos à luz do sol, assim nosso entendimento se obscurece e cega diante do mais luminoso em Deus, que para nós é pura treva; e quanto mais elevadas e manifestas são em si mesmas as coisas divinas, mais se tornam para nós incompreensíveis e obscuras (CRUZ, Livro II, cap. VIII, n. 6).

Por isso, que é preciso ter coragem. Confiança. Entrega. E sair sobre o mar (mundo), pois, o Senhor anda sobre ele. Então estamos protegidos. Veja: Jesus não estava na Barca (enquanto estrutura física), mas na fluidez do mundo (mar). Isso aponta para uma Igreja Povo. E Jesus respondeu: Vem! Esse vem tem muito para nos dizer. Pedro que representa a Igreja nascente foi, mas teve medo e começou a afundar. Pedro representa todos nós porque somos um pouco ou muito medrosos. Isso é normal.

Quando o vento estar contrário ele nos apavora e logo clamamos pelo Senhor. Isso é nossa condição humana e a realidade da missão. Quem nunca teve medo quando percebeu que iria afundar no mar (do mundo) e gritou veementemente: “Senhor, salva-me” (v.30). Quem nunca se sentiu atraído pelo Senhor, mas enganado pela “segurança de sua fé” no mundo?

Há um Simão (caniço) dentro de nós que clama por Pedro (rocha) e há uma rocha clamando por um caniço. Ou seja: nem Simão e nem Pedro somente, mas os dois respectivamente. Somos feitos de barro, não de ferro. Humildade! Como se fará isso, perguntou Maria ao Anjo (cf. Lc 1, 34). “Se eu não vir em suas mãos o lugar dos cravos e se não puser meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não crerei” (Jo 20, 25).  

Devemos clamar sim pelo Senhor. Pois, só poderemos professar dizendo que Jesus é Filho de Deus (cf. v. 33) quando soubermos quem Ele é. A missão é fruto da experiência da pessoa de Jesus. Essa experiência é antes humana e, por isso, sofre purificações. Não devemos ter medo de sentir medo. Ele é humano. Mas, preciso ter a loucura de Pedro sem medo de nos molharmos ou enlamearmos.

Dom Orione ia onde os terremotos destruíam a fim de reconstruir pelo menos a vida dos pobres e inocente. Ele praticou a mandato de Jesus que exclamava, não. Comprar pão não! Mas, com os pães que tendes. “Dai-lhes vós mesmo de comer” (Mc 6, 37). Pois, tem ovelhas sem pastor e é preciso que o pastor absorva seu cheiro. Que fique impregnado de sua fome porque felizes são aqueles que tem fome e sede de justiça porque deles é Reino dos Céus (cf. Mt 5, 1-10). Contudo, “Não se pode crer sem a graça” (STEIN, Edith. 1998, p. 18).

Mas, Jesus não nos deixa só, ele sobe no Barco (na Igreja, na nossa vida). E “o vento se acalmou” (v.32). Depois, podemos nos prostrar e dizer: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (Mt 14, 33). Pois, o evento Jesus Cristo “parou” a história constituindo uma história cristológica. A história da glória. Portanto, “somente o reconhecimento humilde da ignorância pode ser considerado saber verdadeiro e só assombro diante do mistério inconcebível pode ser profissão de fé autêntica em Deus. O amor é sempre um ‘mistério’, ou seja, é mais do que se pode verificar e compreender” (RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. 2012, p. 121). Assim, podemos entender as duas ordens Coragem e Não tenhais medo sob a segurança da presença de Jesus, Sou eu.