Vida religiosa e carisma: "Vinho novo em odres novos"

 

Por Clérigo Renaldo Elesbão,

religioso orionita estudante de teologia em Belo Horizonte 

 

Em Jesus se concentra a novidade. Esta novidade é densa de sabor espiritual. Agora inicia a instauração do Reino de Deus. Jesus é a fonte da nova água que jorra ininterruptamente.

Em Mateus 9, 14-17 constatamos uma discussão entre os discípulos de João e Jesus sobre o jejum. Principia assim: “Como é que nós e os fariseus jejuamos com frequência e teus discípulos não jejuam?” Há aqui três grupos de pessoas que procuram viver a Lei (Torá) de forma radical.

João inaugura uma nova forma de vida, mas que ainda fundada na rigidez dos fariseus, os separados. Estes se consideravam os cumpridores da Torá. Contudo, é somente em Jesus que a Boa Nova do Reino de Deus começa a se realizar não só na mente, mas em todas as ações do homem. O fazer jejum deve estar em harmonia com as disposições vivenciais de cada um. Isso não significa relativizar o jejum, mas dá-lo sentido. O sentido é algo individual.

          Odres velhos carcomidos pelo tempo devem sofrer uma metanoia. Digo sofrer um metanoia, ou seja, uma verdadeira conversão que faça o eu descer a sua própria alma e de lá com Cristo no Espírito, que é pura dinâmica, trazer para fora a grande novidade de Jesus no hoje da história.

Como acolher o novo na vida religiosa? Terá nossos odres envelhecidos? Como encantar a todos com anúncio de uma vida contagiante pelo encontro com o Senhor Jesus? Como devemos nos comportar entre os jovens que nos procuram sedentos de viver uma vida santa? Como transmitir o carisma orionita de forma saudável e leve? Como deve estar meus ouvidos e meus olhos na descrição evangélica nas vicissitudes hodiernas?  Como reviver o encontro com Jesus no trabalho corrido do quotidiano? Como Instaurare omnia in Christo agora?

Essas são perguntas que devemos fazer, urgentemente, a fim de mudar a direção de algumas ideias fixas que nos aprisionam no chão da imanência. Vinho novo em odres novos. O vinho é a graça. O carisma. Este é sempre novo sem deixar de ser o que é. O Espírito é dinâmico e proporciona novidade. A dinamicidade o definem. Ele é a vida nova em ad infinitum (até o infinito). Ele é as formas diárias que devemos obedecer, ou seja, ele é a Providência em ato. E os odres? Os odres é a instituição que recebe a graça dinâmica. A elasticidade situada no hic et nunc (aqui e agora) precisa ampliar, renovar e solidificar a Instituição. Como isso se dá? Através do religioso. Este é que dá vida a letra e a estrutura religiosa. O religioso enquanto estrutura micro-religiosa possui a possibilidade de receber o vinho novo. Se o religioso é odre (micro-estrutura), então ele precisa ser novo cada dia para receber a novidade.

Se ele não se renovar o que acontece? Quebra-se. Há, e como tem religioso quebrado. Despedaçado. Corroído por dentro. Cansado não só no corpo e na alma, mas no espírito. Ora, quando o espírito humano se cansa é porque já não é pessoa. Já não está sob a ação do Espírito Santo. Pois, corpo e alma não podem sair da imanência. Somente o espírito no Espírito Santo pode ascender.

Vinho novo em odres novos, disse Jesus. O vinho vem de um processo longo e dinâmico cuja função é esquentar o “sangue” e o “coração”. O vinho representa a novidade do Reino de Deus. Aqui, o novo não descarta o velho, mas o possibilita expansão. Abre horizontes. Desse modo, aconteceu o sinal das bodas de Caná para que muitos cressem (cf. Jo 2, 1-11).

O que acontece com a roupa velha quando recebe remendo novo (cf. 16)? Responde Jesus: o rasgão fica maior. Nossa “roupa” é velha? A roupa tem a função de nos vestir. De cobrir nosso corpo. E nossa alma com que devemos cobri-la? Devemos nos preocupar primeiramente com nós mesmo cultivar em nós o verdadeiro espírito de piedade, disse Dom Orione. Devemos deixar-nos inflamar pelo santo fogo da Caridade. Devemos fazer o bem. E que nosso bem seja a tradução do Bem. Como estamos situados no hic et nunc da história.

Dom Orione soube de maneira magnífica se situar. Ele estava sempre atento porque possuía o Espírito. Via tudo a partir da bondade divina. Dizia que devemos estará frente dos tempos. O que isso significa? Ficamos ansiosos em trabalhar, trabalhar sem sentido? Sem rumo? Sem saber o porquê estamos trabalhando. Assim fazem as formigas. Elas trabalham, mas não sabem por que fazem. Nós sabemos o porquê trabalhamos? Não será nosso trabalho para Instaurare omnia in Christo? Mas, será que temos o espírito de messias? Não somos zelotas. Somos orionitas. Isto é, somos colaboradores do Reino de Deus pela força da Caridade. Como diz Jesus trabalhadores da messe do Pai (cf. Mt 9,37-38). Não plantamos nada. Não regamos. Apenas Jesus pede que colhamos. Simplesmente meros trabalhadores. Somos poucos, fazemos pouco, mas somos o que podemos ser e fazemos o que deveríamos fazer.

          “Mas o vinho novo se põe em odres novos e assim ambos se conservam” (Mt 9, 17). Esta é saída a este mundo incerto e fluído que se nos impõe. Nós somos os odres que devemos nos renovar para Instuarare omnia in Christo. Somente quem viu. Quem experimentou como a Samaritana pode dizer a todos que conheceu o Senhor (cf.Jo 4, 1-42). Somente quem bebeu desse novo vinho pode se alegrar. Esse sim pode deixar o cântaro e sair… Sair para não mofar. Sair e contagiar. Sair da “sacristia”!

Todavia, sair não devorando, pisando, ignorando, mas anunciando a alegria de ter se encontrado com Aquele sempre presente no interior. Edith Stein nos diz que irradia o que se experimenta interiormente. Noutras palavras, ilumina quem possui luz. Tempera quem possui sal. Jesus não fala que devemos cegar os outros com nossa rigidez farisaica e ele não diz que devemos salgar.

Muita luz cega. Muito sal salga. Bem, sabemos que urge deixar o cântaro e ir. Qual é o meu cântaro? Para onde devo ir? Deixar e sair, às vezes, não implica deixar e sair. Talvez mudar a si mesmo e sair de si mesmo. Precisamos ser moldados pelo Espírito de Jesus ininterruptamente e sair de nossos egoísmos sem que essa saída seja para devorar as forças dos outros.

Devo ser para o alter (outro) fonte de energia e não um tipo zumbi ou um vampiro a procura de carne humana ou sangue. Às vezes, tiramos do outro porque estamos vazios e sedentos. O cristão é alguém que possui sempre. Que ama sempre. No amor estamos saciados mesmo precisando de amor. É o contraste do amor. Quem ama dar e recebe. Reciprocidade constante de movimento entre eu e tu. Contudo, este movimento não é redundante e exclusivo porque os dois se abrem possibilitando o nós. Terá sempre que ter um outro entre eu e tu gerando um nós.

Nós, assim, seremos a comunidade perfeita. Essa é a vida Trinitária. Entre o Pai e o Filho está o amor que é a manifestação do Espírito. Este dinamiza. É nesse sentido que dizemos que Deus é pessoa. A abertura e o movimento amoroso se traduzem na pessoa. Ser pessoa, diz Stein, é ser livre e espiritual. Então, o homem só se realiza sendo pessoa. A pessoa humana assim pode se relacionar com Deus-pessoa e com as outras pessoas.

Como se relacionar com homens que não são pessoas? Eis aqui o problema do amor. Pois, quem ama tem paciência. Em Cristo somos seus imitadores. Nele devemos guiar nossos passos e sentimentos. Todo religioso filho da Divina Providência precisa ater toda a sua vida a fazer como Jesus fez. Dom Orione nos ensina de forma pedagógica e prática. A mente nos orienta. A prática nos forma. Esta nos firma na realidade circunscrita. Dar-nos segurança. Ela não é fixa, mas dinâmica porque dentro dela existe o carisma, ou seja, o Espírito que procede do Pai através de Jesus. Assim, o carisma é vida Trinitária se realizando na história para a construção do Reino.

Sem Jesus tudo é perca de tempo. Ele é atemporal. É eterno. Nossas atividades ordinárias devem descrever o que somos: orionitas. Como agiu Dom Orione? Olhemos sem medo para ele. Não tenhamos medo de seguir nosso fundador. Entretanto, não devemos ser meros imitadores, mas imitar seu espírito (Espírito) no hic et nunc.

Dom Orione disse que devemos estar à frente dos tempos. O que isso significa? Não é um está possuído por um espírito atento as exigências de cada momento? Acaso não prometeu Jesus que o Espírito nos dirá tudo o que devemos fazer? Vinho novo em odres velhos rompe os odres. Devemos, portanto, interpretar as exigências dos tempos para melhor atrair omnia res a Cristo.

É certo que devemos vestir as vestes do cordeiro. O que isso quer dizer? Que roupa estou vestido? Qual o remendo que estou usando para minha roupa? Velho em roupa nova? Ou novo em roupa velha? Pode, infelizmente, acontecer de temos ideias geniais, mas com atitudes medievais. O contrário pode também acontecer. Como harmonizar mente e ação. Os escolásticos tinham uma máxima de verificação excelente nesse sentido, a saber:Adaequatio intellectus ad rem, ou seja, toda ideia devia corresponder a algo concreto. Devemos ficar atento, pois premissas falsas tiramos conclusões erradas. Recordemos o que fez Adolf Hitler com seu partido nazista. Voltando mais um pouco os fatos históricos como exemplo, Martinho Lutero, Orígenes na Patrística (Orígenes foi um grande padre Patrística. Mas, por causa de sua ideia de que devia ser santo a qualquer custa. E não podendo ser fiel na castidade se castrou. Isso foi motivo de não ter possibilitado sua canonização), e Judas Iscariotes. Não devemos forçar algo ante Deus. Não somos o Messias, apenas filho no Filho.

Se somos herdeiros, nisso devemos nos gloriar. Mas, se é pelo fruto que se conhece a árvore, então nosso fruto deve vir de Jesus cuja vida nos dar através de sua seiva (Os sacramentos nos alimenta nesse sentido). Se o Espírito de Deus mora em nós, ele clama em nós pelo Filho Abbá. Disso segue que agimos conforme a vontade de Deus. Será? Como saber? O amor é a medida de toda nossa ação. Se o amor vem de Deus, olhamos tudo e todos sob e por meio desse dinamismo. Pois, diz são João que todo aquele que ama nasceu de Deus.

Nesse sentido, São Luís Orione nos afirma que “Somente a Caridade salvará o mundo”. Isso quer dizer que nada fora do amor pode transformar. Não deixemos apagar a força surpreendente do Amor. Vejam, Jesus nos diz que os pássaros não trabalham. O Pai os alimentam. Nós filhos da Divina Providência somos emersos nessa esfera envolvente de cuidado paternal. Temos um Pai. Somos filhos em Jesus por adoção. Membros de um só Corpo.

Desejamos, pois, conservar a nossa vocação, valores, intuições, instituições, então digamos como Maria fiat, fiat, fiat volutas Dei. Do contrário, nossa vida será como odre velho com Vinho novo. E ainda, vestidos de uma aparente roupa que achamos que ninguém nos ver. Como outrora nossos pais se vestiram de folhas de figueira pensando se esconder de Deus que sonda as profundezas da nossa alma (cf. Ge 3, 7; e Sl 138). Ou seja, roupa velha e remendo novo não combina.

Todos verão e tentaremos nos esconder como fez Adão: “Ouvi teus passos no jardim. Fiquei com medo porque estava nu, e me escondi” (Ge 3, 10). Vejamos, o pecado nos faz ignorantes. Ele nos cega. Pois, quem pode se esconder daquele que tudo sabe? Como podemos responder sem medo: “Onde estais?” (Ge 3, 9). O que fazes? Com o vinho novo? Põe nos odres velhos?

Deixa teu cântaro e vai! Sem medo da nudez. Sai da sacristia! Volta a ti mesmo e sai de ti mesmo sem medo. Seja livre e verás a Glória. Veja todos temos estruturas. Como elas estão? Vinho novo em odres novos. Falta vinho e odres novos? Roupa nova sem rasgão é direito do cristão, pois os que lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro são aqueles que participam do banquete eterno.

          “Como é que nós e os fariseus jejuamos com frequência e teus discípulos não jejuam?” (Mt 9, 14). Queres também perguntar? Sois de qual grupo? Daqueles que são de João que desejam o Reino de Deus com odres velhos? Daqueles separados (os fariseus) cuja atitude é jogada nos ombros dos outros? Depositam fora de si mesmo o que deviam carregar. Sois do grupo daqueles que usam as leis como folhas de figueira, isto é, todos sabem que estais nus e quereis proteger-te inutilmente?

Enfim, ou quereis ser do grupo dos “festeiros”. Dos que vivem com o noivo e, por isso, se alegram. Eles sabem que são apenas trabalhadores. Não o dono da Vinha. Eles aprenderam a conjugar o Verbo divino em todos os tempos e lugares. Se é sábado e estão com fome, comem. Se alguém estar doente, curam. Se encontra uma pecadora, acolhe-a. Se alguém os ofendem eles dizem como o Mestre eles não sabem o que fazem.

Portanto, há vários se. Esta é a supressa do Amor. Sabem que todo dia bastam suas preocupações. São leitores da realidade circunscrita. Cada minuto é uma linha, cada hora um parágrafo e cada dia uma página. Não vêem a existência parada, mas dinâmica. Por isso, cada dia, cada pessoa ou situação é imprevisível. Porque é imprevisível tudo o que provém do Espírito. Ele não é pronto. É pessoa. Sua ação é simples e complexa. Simples porque é manifesto como ruah (vento ou espírito) e complexo porque sopra onde quer.

Urge, portanto, na vida religiosa enquanto odre novo que receba o Vinho novo, pois “assim ambos se conservam” (Mt 9,17). Tanto o odre como o vinho são fundamentais para a Messe. Não deixemos nossas estruturas mortas como se o carisma fosse algo inanimado. Ele é animado pelo Espírito do fundador que pendura gerações. Se o carisma é de Deus e Deus é de todos, então o carisma é divino e é para todos.

Somos nós odres novos? A festa começou! Mas, é sábado. O que fazer? Jejuar? Rostos de sexta? Não! Rostos de domingo! Somos a Instituição. Agimos, deverás, pelo carisma! Damos vida o que não tem. Precisamos “estar à frente dos tempos”. Como descrever os tempos, o Presente eterno? Como compreender a memória do passado no presente, como intuir o presente no Presente e como possuir a esperança sempre presente do futuro?

Não temos como saber. Mas, temos como viver. Sendo odres novos em tempos escorregadios. Tempos efêmeros cuja subjetividade é “roubada” ou “rasgada” pela “novidade” corroída pelas estruturas instáveis do mundo atual. Não se concebe mais a ideia medieval de estruturas prontas, rígidas, fechadas, mas emerge uma “Novidade” evangélica que todos desejam: a Vida em abundância. Atualmente, ou os odres se renovam para receber o Vinho novo ou se rompem. Escutemos a máxima do Mestre: vinho novo em odres novos. Se assim fizermos ambos se conservam, promete Jesus.