18 fev A Igreja está em crise?
Não é de hoje que essa ideia é repetida pela imprensa, mas a noção de que a Igreja Católica está em crise ganhou nova força com a renúncia do Papa Bento XVI. Muitas hipóteses começaram a ser apresentadas para explicar a decisão, ou pelo menos, para contextualizar o cansaço que se abateu sobre o pontífice de 85 anos. Pedofilia, corrupção e luta entre grupos internos e o descompasso entre a mensagem cristã e a cultura moderna são as principais faces dessa crise, afirmam todos os jornais.
Nesta semana, a revista Veja abordou o tema. Embora no miolo da publicação haja uma matéria bastante razoável, correta em sua essência e muito respeitosa para com o Papa e os católicos, na capa, Veja apelou e disse que a renúncia tem como objetivo “salvar a Igreja” da crise. Mas não é só Veja. Por todo lado o que se vê é uma repentina preocupação da imprensa com o que parece ser uma inelutável decadência da instituição. O tom de muitas publicações chega ao alarmismo. Parece que a Igreja está enfrentando a crise mais grave de sua história. Mas não é bem assim.
Sangue nas arenas
A Igreja já passou, sim, por muitas crises. Algumas delas pareceram, em seu tempo, efetivamente fatais. E, sob certo aspecto, eram mesmo. Afinal, quando começou a se espalhar pelo mundo romano, a mensagem cristã e a comunidade dos fiéis – a Igreja – foram furiosamente combatidos, e o castigo para os que não abandonassem a fé era a morte em incontáveis variações de crueldade. Durante quase três séculos, cada cristão vivia o risco iminente de morrer simplesmente por ser cristão. As execuções era dolorosas e espetaculares, em meio a feras e gladiadores na arena, para cumprir a quádrupla função de punir, eliminar os indesejados, desencorajar os demais e entreter o populacho. Acho difícil pensar em uma crise pior do que essa. Imagine guiar os fiéis em meio ao terror, em meio às sombras, em meio a uma imensa dificuldade de comunicação. Uma Igreja ainda muito desarticulada, extremamente pobre, desprovida de apoios terrenos significativos. Pois essa Igreja sobreviveu. O sangue dos cristãos martirizados foi sementeira de fiéis. Pouco a pouco a barreira de classes foi ultrapassada e surgiram convertidos entre os soldados, entre os comerciantes, entre nobres patrícios – até que o próprio imperador se fez cristão. Essa crise, literalmente mortal, foi superada.
Prisioneira do poder
Muitas outras se seguiram. Apoiada pelo Império Romano, a Igreja acabou se misturando demais com ele, e sua autonomia ficou gravemente comprometida. Um golpe da História resolveu o problema: o Império caiu, levado pelas próprias incompetências e pela fúria dos bárbaros. Sobrou de pé apenas a Igreja – e agora dotada de uma organização que lhe possibilitaria atravessar os séculos.
O Oriente se afasta
No século XI aconteceu o primeiro grande rasgo. Diferenças culturais, disputa de poder, incompreensões, pequenas divergências doutrinárias e falta de tato resultaram na separação entre a Igreja grega e aquelas a ela vinculadas – a da Rússia e as da maioria dos povos eslavos – da Igreja de Roma. Foi um rasgo triste e ainda hoje não sanado, conhecido como o Grande Cisma do Oriente. Mas, mesmo amputada, a Igreja sobreviveu a ele.
Avignon e o Ocidente dividido
Outra situação gravíssima ocorreu séculos mais tarde, começando justamente com o outro papa cujo nome está sendo relembrado com frequência ultimamente: Celestino V. Na verdade, a eleição do humilde e santo monge deu fim a uma pequena crise da Igreja: o conclave mais longo da história, que já durava mais de dois anos sem solução. Divididos, os cardeais não conseguiam chegar a um consenso sobre quem eleger. Celestino foi escolhido após muito tempo, devido à sua fama de santo e profeta. Mas não soube, nem quis, conduzir o governo da Igreja. Renunciou depois de cinco meses. Para seu lugar foi escolhido Bonifácio VIII. Autoritário, desejoso de que Roma recuperasse o poder que alcançara nos tempos de Inocêncio III, no começo do século XIII, o novo papa se indispôs com os poderosos italianos, e, principalmente, com o rei da França, Felipe, o Belo. o monarca começava a dar os primeiros passos rumo a centralização do poder em seu país, criando uma nova burocracia estatal, submetendo os senhores feudais, fortalecendo seu exército. A luta pelo poder colocou o rei e o papa em campos opostos, e houve guerra. Derrotado militarmente, Bonifácio VIII não tardou a morrer. Felipe, o Belo, conseguiu que fosse eleito um papa francês, e este se mudou para a França, abandonando Roma, a sede da Igreja. Durante setenta anos, seria sempre eleito um papa francês, e eles viveriam agora em Avignon. O governo francês teria força excessiva nos destinos da Igreja. Até que um dia o papa decidiu se livrar do jugo gaulês e voltou para a Itália. Mas começaria aí uma crise ainda maior. Após sua morte, os cardeais se dividiram e elegeram dois papas diferentes. E assim prosseguiria por quarenta anos: falecido um papa, um novo era eleito, sem reconhecer, nem ser reconhecido, pelo outro existente. Cada cardeal, cada bispo, cada país escolhia a qual papa se mantinha fiel. A Igreja estava dividida em duas no que ficou conhecido como o Grande Cisma do Ocidente. Havia o temor de que a existência de dois papas simultâneos (chegou a haver até três), cada um com aliados em países diferentes, conduzisse a Igreja a um novo rasgo. Mas o Concílio de Constança, depois de muitas negociações, conseguiu abrir o caminho para que os três papas de então renunciassem e fosse eleito um candidato de consenso, que reunificou todo o clero. Foi mais de um século de muitas disputas, muito conflito, mas a crise foi superada.
O Renascimento e a Reforma
Outra crise difícil aconteceu, e conduziu a uma maior ainda. A primeira foi a do papado renascentista. Sua consequência, a Reforma Protestante. Depois de voltarem a Roma e conseguirem superar o cisma do Ocidente, os papas si viram em um ambiente novo, um tempo novo: o Renascimento. Vindos de poderosas famílias, se deixaram levar pelo clima da época. Dedicaram-se mais a financiar artistas e a promover guerras. Rodearam-se de sobrinhos e abandonaram as virtudes. Rodrigo Bórgia subiu ao trono de Pedro já com filhos, e teve outros mesmo depois de ser feito pontífice numa eleição que os historiadores consideram comprada. A Casa de Deus fora conspurcada por maus governantes. Os escândalos criaram o campo propício para que um alemão, um francês e um rei inglês começassem a fazer novos violentos rasgos na Igreja. Ocorria a Reforma, confrontando a doutrina católica, levantando terríveis guerras e tomando países inteiros do rebanho. Mas, na mesma época o mundo ganhava novos horizontes. Coincidência ou Providência, coube a duas nações que ficaram praticamente imunes à reforma o pioneirismo no Novo Mundo. Portugal e Espanha lançaram seus navios ao mar em busca de riquezas, mas levaram junto a fé católica a outros povos. E no campo das ideias e da organização, a Igreja também reagiu. Promoveu o Concílio de Trento, estabeleceu definitivamente sua doutrina e organizou as bases de uma reforma interna. O tempo dos papas que causavam escândalo passou. A crise foi extremamente dolorosa, mas a Igreja sobreviveu.
Sem terras
Mais recentemente, outra crise: no século XIX a Igreja via serem tomadas as vastas terras que ainda possuía na Itália e que lhe garantiam poder e independência. Sobraram-lhe apenas pouquíssimos quilômetros quadrados incrustados dentro da cidade de Roma. Expropriada, como poderia sobreviver? Pois a derrota foi uma grande vitória. Livre das especulações políticas e fundiárias, a Igreja passou a se dedicar exclusivamente às questões espirituais. Sem exército, não precisava mais se preocupar com guerras. Feita pobre, podia ser mais cristã. Outra crise que passou.
Não prevalecerão
O que há hoje é uma crise? Pode até ser. Mas se for, é nada comparada às grandes tempestades de outros tempos. A Igreja sobreviveu a perseguições, guerras, maus governantes. E isso ao longo de dois mil anos. É inegável que há uma mão a guiá-la, a protegê-la. Como já disseram: se é formada por homens tão pecadores, somente a proteção de Deus explica a sua sobrevivência. As portas do inferno não prevalecerão, prometeu Cristo. A História já demonstrou incontáveis vezes que isso é verdade. Por isso, rezemos pelo Papa Bento XVI. Rezemos pelo novo papa que será escolhido. Deus estará com ele e conosco, essa é a única certeza que temos. Mas também é a única de que necessitamos.
Fonte: http://domonte.wordpress.com
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