BAÚ DAS RELÍQUIAS

ADEUS ÀS  QUINQUILHARIAS SAGRADAS

foto - crônica - bau - 14 jan 17 ajust

 

As irmãs estavam diante de um baú com tantas coisas. Várias vezes já tinham aberto aquela caixa antiga, que chamavam carinhosamente de baú das relíquias.  Tinha de tudo: brincos antigos, pequenas joias envelhecidas, cadernos escolares antiquíssimos, vestidos bonitos (muito antigos), presentes embalados e tantas coisas.

As irmãs estavam sofrendo e cada uma tinha renunciado à missão de despachar tantas coisas. Afinal, não se tratava de despachar tantas coisas, mas desfazer-se de tantas lembranças.

Luiza, mais destemida foi anunciando:

– Chegou a hora de limparmos o baú. Fazendo doações para entidades de caridade.

– Só de pensar, meu coração aperta, disse a Cida. As coisas têm valor, mas para vender em brechós, viram pechincha.

– E nem sei se vão mesmo para os pobres – falou a Luciana   – se não ficarem no meio do caminho.

– Se a gente pensar assim, a gente nunca faz caridade. Tem gente muito correta pelo mundo afora, porque não acreditar?

A resposta rápida e convincente da Elisa foi a melhor argumentação. Saber que a doação poderia  socorrer famílias mais pobres, foi o melhor convencimento.

Enquanto passava no rosto uma peça de roupa preferida da mãe, Elisa falou:

– Não me conformo com a morte dela. Parece que foi ontem.

Com voz embargada, como quem vai cair em prantos, Cida iniciou uma frase:

– Me recordo dela entrando no hospital. Ainda olhou para trás e… – mas não conseguiu finalizar. Todos mudaram o tom de voz, pois não queriam desmanchar-se em prantos.

– Se a gente começar a  fazer o passado ficar presente, não caminhamos para a frente.

Quando a Luiza disse essa frase, Luciana interceptou e lamentou.

– Bem que gostaria de voltar no tempo. Tempo não volta, mas tempo constrói memórias.

Todos sabemos bem como é difícil despegar-se das coisas que constituíram nossa história, momentos felizes, acontecimentos fortes, eventos tristes. A gente  não quer que o tempo passe.

Para segurar o tempo, procuramos não esvaziar os armários e vamos lotando as prateleiras de quinquilharias. Trazemos conchas do mar, porque não podemos carregar o mar conosco. Roubamos uma mudinha da floresta, como meio de trazer a floresta para casa.  Roubamos souvenires das pessoas queridas, como uma forma de tê-las pertinho de nosso coração.

De repente, vemos nossos armários, prateleiras e dispensas abarrotadas de coisas meio inúteis. Dizem que um sinal de velhice é a incapacidade de jogar fora as coisas inúteis. Dizem também que este sintoma é mais comum nos homens.

Também, com certeza, é culpa de nosso hábito de  comprar sem refletir, de comprar sem precisar, de comprar sem critérios. Depois ficamos com pena de desfazer-nos de nossos objetos, pois nos afeiçoamos a eles.

Passadas horas, as quatro irmãs ainda contemplavam as relíquias da Mãe Felipa. Não tinha decidido nada e o baú se escancarava diante delas, como uma caixa de doces, que todos adoram “lamber com a testa”, mas a dieta não permite degustar.

– Façamos assim, disse uma delas, acho que foi a Elisa. A gente se dispersa. Até o final do dia, cada uma vem aqui e pega uma lembrança, uma relíquia. Pode pegar mais. Depois, qualquer uma de nós fica livre para dar sumiço no baú.

– Relíquia verdadeira, é relíquia que se guarda no coração. Nosso baú mais verdadeiro, onde guardamos as mais lindas lembranças.

Não acompanhamos o final do enredo. Apenas na manhã do dia seguinte, nem mais sombras de um velho baú.

 

Pe. Antônio S. Bogaz (orionita), doutor em Filosofia, Liturgia e Sacramentos e

Teologia Sistemática – Cristologia

Prof. João H. Hansen, doutor em Literatura Portuguesa e

Ciência da Religião e Pós-doutor em antropologia