Um animal, um deus ou um homem? Uma análise dialética da relação interpessoal

Por Clérigo Renaldo Elesbão, orionita

 

Nas relações interpessoais percebemos manifestações dialéticas e antidialéticas. Estas se referem ao indivíduo que tem medo de usar sua própria liberdade. Como isso acontece? Parece necessário explicitar o termo dialético e antidialético. Não se pretende aqui tomar a postura de Hegel (1770-1831), filósofo alemão, para dizer o que significa dialética. Contudo, sua noção nos enriquece. Pois, a síntese entre o não e o sim constitui a dialética. Esta, aqui, tem conotação pessoal. Noutras palavras, ela significa a atuação do homem a fim de efetivar a liberdade.

Assim, as estruturas das coisas são feitas de contrastes. Uma linda flor, por exemplo, é a soma das diferenças. E mais: uma criança, um adolescente, um jovem, um adulto, um idoso, um homem, oxalá uma pessoa humana. Hoje se ver paradas de evolução psicológicas e espirituais assustadoras. Um adulto ainda criança. A verdadeira dialética seria um adulto que assume o ser criança e não a criança que assume o adulto. Em conformidade com isso Jesus nos diz que para entrar no Reino de Deus é preciso nascer de novo, e ser como uma criança (cf. Jo, 3; Lc 18,17).

Antidialético aponta para o indivíduo, que ainda não é pessoa, se refere aquele que quer evitar o diferente, o contraditório. Pessoa é o mistério do ser humano como afirma Karol Wojtyla na sua obra persona y acción. Esse conceito do ser humano descreve suas condições de liberdade. Só o homem é pessoa porque pode apontar para dentro de si mesmo e para fora de si mesmo como afirma Edith Stein na sua obra Sobre la estructura de la persona humana. Wojtyla fala de uma experiência rica, complexa e percebe o exterior referente a sua própria experiência (cf. WOJTYLA.  Persona y acción, 1982, p. 3).  

Sabemos que vida é devir. Contradição e síntese. Vejamos como é bonito o contraste de cores. A feiura é justamente a padronização de uma cor, de um estilo, de uma ideia e etc. Exemplo disso foi o Nazismo. Hitler não admitia o diferente, então eliminava o contrário a ele. As relações são densas de conflito. Essa é uma realidade existencial.

O medo do tu indica a não liberdade ante si mesmo e tem como consequência a privação da liberdade alheia. A empatia aqui não realiza seu objetivo de possibilidade ética. É bonita todas as pessoas que superaram suas prisões individuais para sair de si e ir ao encontro do outro. A cultura do encontro é a proposta do Papa Francisco. Ele mesmo é saída ao outro.

Nesse sentido, Deus é trino. É pessoa. É relação. Disso deriva a unidade na diferença. O Pai não é o Filho. O Filho não é o Pai. O Pai e o Filho não são o Espírito Santo. Os três são Um, mas não são idênticos. Se há amor, aí existe unidade. Esse é o segredo. O amor é a suma da relação interpessoal. Pois, o amor é a justiça mais perfeita do mistério da pessoa. A pessoa humana se realiza no amor. O amor é o clímax da existência humana. A pessoa através da transcendência participa do mundo exterior e se realiza como sujeito de autogoverno. 

Vejamos, as características de quem vive enclausurado em si mesmo sem transcendência, com medo do encontro. A saber: medo de ser visto interiormente através da exterioridade corporal; medo de perguntas complexas; medo de não ser aceito; medo das qualidades (oferta) do outro, como sentiu Caim; medo da aproximação afetiva e efetiva, ou seja, medo de amar. “A pessoa solitária e isolada, que não pode admitir sua necessidade de amor e afeição, vai se declarar ‘loucamente apaixonada’ por alguém (a quem não ama realmente) (POWEL, John, Por que tenho medo de lhe dizer quem sou? 2001, p. 92).

Medo do outro que pode ser um inferno que me olha, me vigia, na linguagem de Sartre. O outro parece indicar o superego sempre alerta. Daí podemos entender porque é melhor se relacionar com um cachorro do que com as pessoas. O animal é determinado, o homem não. Este é imprevisível devido sua liberdade que estar por fazer-se. O homem que é possível calcular deverá ser um animal “vestido” de homem. Os santos foram imprevisíveis. Quem calculava os feitos caritativos de São Luís Orione? A moção do Espírito Santo é dinâmica. Quem age por Ele diz coisas e faz coisas nunca ditos e nunca feitos.   

A sustentação de um eu exterior em contraste com o eu interior fere o processo de liberdade. Fragmenta a alma e a sua integração psicossomática. Fica à mercê da fluidez existenciais. O caos não é nem de homem e nem de animal. Contudo, é mais para o homem do que para o animal. Este já nasce determinado. Aquele se não autodetermina fica menos que este. Será então um deus? Não. Eles não existem. Só Iahweh é o que é. Único, imutável e coerente. “Ele sempre se move, porque é vivo em si, embora sem mudança” (O livro dos vinte e quatro filósofos. Trad. De REEGEN, Jan G. J. Ter. Fortaleza: EdUECE, 2010, p. 83). E ainda, “Deus é uma esfera infinita, cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência está em lugar nenhum” (Idem, p. 65).  

O outro é sempre um perigo quando ele não pensa como eu. Não deseja como eu. Não faz o que eu faço. Com isso se constata que, “Só entre pessoas autênticas se dá uma relação autêntica” (BUBER, M. Qué es el hombre? 1985, p. 145). Isso se passou, também, com Jesus e Pedro. Quando Jesus anuncia que ia à Jerusalém, sofrer por parte dos anciãos, Pedro lhe repreende porque não queria perder o messias mental que alimentava. Aceitar o Messias pobre, talvez. Mas, o Messias fraco, sofredor. Nunca. Que isto não te aconteça, Senhor (cf. Mt 16, 21-27). Isso nos indica que não basta saber da identidade, mas também a missão. Ou seja, o que outro é e faz. Deixar o outro viver. O amor só é verdadeiro quando assume e supera o Eros. A paixão em si mesma não pode transcender. Ela, sozinha, é a loucura da alma.

Jesus soube aceitar Pedro como ele era. Teve paciência com sua lentidão em crescer. Sabia que o homem é a síntese das contradições da vida. Pois, um eu sujo não pode ver um tu limpo. Tudo é puro para os puros (cf. Tito 1,15) Parafraseando São Luís Orione podemos dizer que precisamos pensar sempre o bem de todos, pensar o mal nunca, de ninguém. “O amor não faz nenhum mal contra o próximo. Portanto, o amor é o cumprimento perfeito da Lei” (Rm 13, 10). Com isso, verificamos que a pessoa humana é o único animal que não nasce pronto tem que ir se fazendo. Se realizando, se tonando pessoa. 

Stein diz que o resultado da formação do homem é a superação do animal para a pessoa. Isso é dialético. O antidialético seria o homem que não sabe sintetizar as contradições da vida. É o antidemocrático. É aquele que se apoia com perguntas redundantes em si mesmas e com respostas unilaterais. A vida é complexa, então complexa deve ser nossa visão sobre ela. Dar respostas simples é perigoso e é próprio do ditador. Olhemos para a ditatura, no Brasil, em 1964. Quem poderia opinar? Quem poderia ser livre?

Augusto Cury, em seu livro Inteligência multifocal, nos propõe um alargamento das nossas mentes a fim de podermos ser pessoas saudáveis, democráticos, até nas ideias. Um engenheiro de ideias sociáveis, construtivas. Aristóteles já afirmara que o homem é um ser social. E que o homem fora do meio social ou é um animal ou um deus. O que isto significa? Que para ser pessoa humana o homem deve enfrentar a vida social.

Os conflitos virão. Que venham! Contudo, se os homens são bem formados, diz Stein, são pessoas. E se são pessoas, são empaticamente éticos. A empatia corrige caráter e forma valores pessoais (cf. ALMEIDA, A empatia em Edith Stein, IHU, 2014). Ela é conhecimento da vivência do outro. Se Hitler fosse empático com os não arianos, então ele poderia ter se reconhecido nos judeus, homossexuais, deficientes e etc.

Com isso, “temos entendido ‘integração’ da unidade tomando como base a multiforme complexidade do homem. Nesse sentido, a integração é um aspecto complementar do dinamismo da pessoa; um aspecto… de transcendência” (WOJTYLA, K. Persona y acción, p. 297). A integração psicossomática pessoal reconhece o valor do outro como outro eu. Isso é maravilhoso! O ser pessoal mantém relações interpessoais para ser o que é. Muito mais que relações cognitivas-intersubjetivas, mas relações interpessoais. Porque “O ser humano não é um anjo, um espírito puro; é alma e corpo substancialmente unidos: tudo o que ele faz, amar inclusive, tem que refletir essa estrutura” (CANTALAMESSA, 2011).

Assim, temos visto que a relação eu-tu em si mesma é dialética. A síntese ou a harmonia depende das pessoas que vivenciam tal encontro. Stein alerta que, o verdadeiro encontro entre o eu e o tu deve remeter a interioridade, através do olhar. Pelo olhar o eu olha o outro eu. Se o eu responde abrindo-se ao outro eu, então temos um eu e um tu em recíproca relação. Isso humaniza o ser humano.

Contudo, há sempre o risco do eu usar o tu como meio de prazer e não como tu nele mesmo. Daí temos relações objetais. A apatia é o fenômeno mais intenso e característico da atualidade. Constatamos, pela experiência, que o ser humano se opõe, às vezes, aos outros homens, mas não consegue viver sozinho. Se vivesse só seria um animal. Ou um deus. Para ser homem tem que conviver. Essa atração e repulsão entre os homens elemento de felicidade. Porque “A origem do eu é marcada por carência. Não uma ‘carência infeliz’, mas um desejo de plenitude e de felicidade” (BERNARDETE, Dialética da subjetividade, Fortaleza: EdUECE, 2007, p.23).

Constitui, atualmente, uma necessidade de uma educação empática a fim de construir uma nova humanidade, fundada no amor incondicional. Livre da irracionalidade, apatia, desunião, incompreensão e tantos fechamentos que nem os animais e os “deuses” são condizentes. “Que é o homem, para dele te lembrares? […] E o fizeste pouco menos do que um deus coroando-o de glória e beleza […] sob seus pés tudo colocaste: ovelhas e bois” (Sl 8, 5-8). Vejamos: não somos nem animais, nem anjos, mas pessoas humanas. Com glória e beleza. Construamos, portanto, nossa essência.