Missa da Mãe Negra na Igreja da Achiropita
O Bexiga é um bairro sui generis da capital
paulista, marcado pelo encontro cultural de negros e italianos. E, mais
recentemente, dos nordestinos. Essas populações só fizeram enriquecer o
panorama cultural da cidade. Ícone da presença italiana em São Paulo – os
imigrantes começaram a chegar no século XIX -, o bairro também abrigou o
quilombo do Saracura. Os negros antecederam os italianos na região, porém sua
história é menos conhecida, ainda que o bairro seja o berço da escola de samba
Vai-Vai. A convivência entre essas culturas e etnias distintas se reproduz na
Paróquia Nossa Senhora Achiropita, construída na tradição calabresa e onde são
celebrados missas, batizados e casamentos afros.
A presença de elementos da cultura afro-brasileira nas celebrações
católicas na Achiropita foi idealizada pelo sacerdote Antônio Aparecido da
Silva, o Padre Toninho, segundo padre negro na paróquia do Bexiga. Ao assumir a
função de pároco, ele julgou que o momento era oportuno para organizar um grupo
pastoral na comunidade voltado para o resgate e a preservação das raízes
culturais afro-brasileiras. No ano de 1988, quando foi comemorado o centenário
da abolição da escravatura no Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) escolheu o negro como tema da campanha da fraternidade.
A primeira missa afro-brasileira na Achiropita
foi celebrada no fundo da igreja, meio às escondidas, com a desaprovação de
muitos, até mesmo da comunidade negra. A novidade mostrou-se, a princípio,
assustadora. Os mais conservadores chegaram a fazer um abaixo-assinado pedindo
a transferência do Padre Toninho. O então arcebispo de São Paulo, D. Paulo
Evaristo Arns, porém, apoiou o padre. Com isso, a maioria da população católica
do Bexiga acabou aprovando a iniciativa. Em 1998, D. Paulo celebrou sua última
missa como arcebispo de São Paulo na Achiropita. Era a missa da Mãe Negra.
A Pastoral Afro busca recuperar as raízes do povo afro-brasileiro,
valorizar sua cultura e resgatar sua dignidade. Procura também estimular a
comunhão cultural, combatendo o racismo contra qualquer povo ou etnia. Padre Renato Scano, um dos padres habituais
nas celebrações afros, um legítimo representante dessa mistura étnica existente
no Bexiga – é filho de pai italiano e mãe negra e tem sua história ligada ao
bairro -, foi coroinha na paróquia em 1938.
Durante a história do negro no Brasil, a religião constituiu-se o traço
mais forte de preservação dos seus valores. Assim, ao se organizarem, os
integrantes da Pastoral foram buscar no candomblé, na umbanda e no catolicismo
popular os elementos culturais para suas cerimônias. Essas celebrações diferem
das católicas tradicionais pela liturgia, que envolve canto e dança ao som dos
atabaques e outros elementos da cultura negra, tais como a indumentária, a
decoração, o ofertório à base de comida, os recipientes de barro, a
água-de-cheiro, a reverência à memória dos ancestrais e as congadas.
Algumas de suas características mais marcantes são a descontração e a
energia – o negro manifesta a sua fé com festa e uma alegria contagiante.
“O negro reza dançando e dança rezando, porque não celebra somente com a
cabeça, mas com todo o corpo. Quando os atabaques tocam, o corpo mexe e quer
louvar a Deus”, disse Padre Toninho em uma palestra na Pontifícia
Universidade Católica (PUC/SP), em São Paulo, citada no livro Axé, Madona
Achiropita – Presença da cultura afro-brasileira nas celebrações da igreja
Nossa Senhora Achiropita (Edições Pulsar/SP/2001), da jornalista e socióloga
Rosângela Borges.
No livro, Padre Toninho afirmou que “a
estrutura da Pastoral e a de um candomblé é muito semelhante. Há uma
convivência, uma coisa comunitária, bem própria do candomblé. A maneira de
estar e de ser das pessoas, o vínculo que se estabelece, essa coisa de família
são muito íntimas no candomblé. E depois, quando termina a missa, sempre tem
alguma coisa para comer. Essa sociabilidade tem tudo a ver com o que ocorre num
terreiro, ou melhor, numa roça de candomblé”. A feijoada servida no salão
da igreja após a missa da Mãe Negra já virou tradição no bairro.
Gisele Martins, economista: Formada em economia pela Faculdade de Economia e Administração
(FEA-USP), com pós-graduação em marketing e propaganda pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM) e em comunicação na Fundação Getúlio Vargas
(FGV). Trabalha no Departamento de Análise de Mercado da TV Globo.