Beija-Flor

O BEIJA-FLOR DESMAIADO

PEQUENAS AÇÕES QUE NOS SALVAM

Fazia muito calor, mas  muito calor mesmo. Era o final de uma manhã de verão, por volta do meio dia. Não olhamos o relógio, mas era quase meio dia mesmo e o sol já reinava feito uma bola incandescente. A missa estava para começar, na Capela da Serra dos Padres. A Val e o Benê já tinham convidado todos para a missa e já estávamos meio atrasados. Era o final de um retiro da Equipe de Nossa Senhora. Todos já estavam quase a postos para os comentários iniciais. A equipe de canto já tinha até acertado os tons das vozes e os cordões das violas. O comentarista enrolava um pouco o tempo, para esperar os últimos atrasildos. Da frente do altar, vimos um pequeno pássaro que tentava escapar do mezanino da capela. As janelas fechadas, tudo um pouco empoeirado e em desuso. O mezanino funcionou em outros tempos como coral da Igreja. Lembram? Aqueles tempos antigos, quando o coral ficava nos fundos e na parte alta da Igreja.

– Veja, disse o Carlinhos. O passarinho tenta escapar.

– Passarinho, não, disse a Andréa, é um beija-flor! (acho que ela gosta sempre de fazer uma pequena correçãozinha. Hábito de mãe que adora sempre retocar. Retocar a frase do marido, o penteado da filha, a camisa do filho, o vaso na mesa. Adorável Andréa).

– Sim, um passarinho é um beija-flor. Não disse errado.

– Mas não precisou, precisa ser preciso. Beija flor é beija-flor. Passarinho é passarinho.

Percebemos que a discussão tocava a anedota. Quantas vezes alimentamos discussões que não tem nenhuma importância. Um amigo francês disse que era para “remplir le vide”: preencher o vazio.

Fomos ate o coral. O pássaro estava desmaiado no chão. Quase nem mais respirava, percebia que estava com insolação, com sede total, totalmente desidratado e cansado, cansado. Tão cansado que o pegamos na mão e ele nem reagiu. Era um beija-flor muito colorido, cauda longa, corpo miúdo, plumas brilhantes.

Pegamos o bichinho com a mesma leveza  e delicadeza que se pega um bebê muito novinho. Qualquer gesto poderia sufocá-lo, qualquer descuido seria fatal.

Fomos até o jardim, numa sombra, perto de uma torneira. Pegamos água na palma da mão e aproximamos de seu bico. Ele teve ainda forças para aspirar algumas gotas. Colocamos uma flor e seu pescoço se esticou e ele roubou o néctar sagrado daquela plantinha. Em poucos minutos, se reabilitou, ficou um pouco quietinho, tão quietinho que parecia rezar e voou para uma árvore bem colorida. O colorido de sua plumagem se perdeu nas cores das flores. Não conseguimos avistar nosso pequeno tesouro.

A gente se entreolhou, bem contentes. Fizemos uma boa ação, parece que todos pensaram.

– Se eu morrer hoje, meu purgatório será menor, disse alguém em tom de contenteza.

– Mesmo assim, não será muito curto, disse outro engraçadinho.

São pequenos gestos que fazem a diferença nas nossas ações e na vida das pessoas, Quantas vezes, as pessoas estão à beira do abismo e nós chegamos e com uma palavra, um sorriso ou um abraço resgatamos um amigo, salvamos seu dia e elevamos seu espírito.    

Por vezes, uma pessoa está sofrendo muito, sem vontade mesmo de viver e nós chegamos como um bom samaritano e o resgatamos de sua angústia. Outras vezes, somos nós que somos resgatamos da nossa aflição. Por certo que uma palavra não ressuscita um amigo morto, não devolve um emprego, não  cura uma doença. Mas estas ações podem arrancar a pessoa de sua dor e promover sua vontade de lutar, renascer seu desejo de viver.

Chegar mesmo na hora certa e ter sempre uma palavra boa, um estímulo cordial, um gesto de solidariedade. Essas pequenas atitudes engrandecem nossa vida e enobrecem nossa existência.

Perdidos nos pensamentos, ouvimos o Canto de Entrada. A missa estava começando. Corremos para a capela e participamos contentes da celebração. Poucas vezes na vida comungamos com tanta leveza na alma.

 

  Pe. Antônio S. Bogaz (orionita) , doutor em filosofia e teologia

Prof. João H. Hansen, doutor em ciências da religião