O som da Balalaika

O SOM DA BALALAIKA

UM ANJO, JOÃO LUÍS E UMA MÃE, VALQUIRIA

Como as plantas,  nós nascemos, crescemos, produzimos sementes e um dia acaba o nosso ciclo na terra. Tudo é natural, porque a vida nos fez ver que o mundo precisa ser assim, para que o céu continue a brilhar, para que as sementinhas possam germinar e começar tudo de novo. Isso é bem poético, mas é também bem triste. Mas eis que um telefonema nos faz ver que nem sempre é assim que a vida se apresenta, porque há exceções para tudo e para todos.

Infelizmente queremos informar que o priminho da Tatá e do Tibico, o menininho João Luis, faleceu depois de tanto lutar contra sua doença.

– Seus pais, João Carlos e Janaina estão voltando para Rio Claro.

Pobres pais. Estamos rezando pela família – respondemos.

Olhamos para os que estavam perto da gente. Todos estavam muito tristes. Quanta ternura e quanta dor, quando uma criança  vai ao encontro de Deus. é um anjo que parte na sua mais tenra idade.Por nossa fé, sabemos que habitará o paraíso e vai ser pura alegria. Mas, e nós? Ficaremos com a saudade; a saudade como a mais nobre expressão de nosso afeto.

Nem tinha passado um dia; menos de um dia antes, a Valquíria, irmã da Iara, jovem mãe de família, também se despediu e foi para a casa do Pai. Tristeza sem fim. Todos querendo acolher as lágrimas do seu esposo Luiz Geniseli e dos seus filhos Maria Eduarda e João  Luiz.

Após os velórios, sepultamentos em  lágrimas muito serenas. debruçamo-nos sobre nossas próprias vidas. Paramos para pensar um pouco sobre esta caminhada, fora da lógica natural,  pela qual os mais idosos  partem primeiro nesta grande jornada da vida. Nem sempre é assim. A bem da verdade,  não sabemos o mistério de tudo isso, afinal não nos foi dado opinar. Podemos mudar a história, mas não o destino. E nestes dias silenciosos, lidamos com a despedida e a dor.  É Deus quem nos segura pela mão e as famílias da Valquíria e do João Luís nos deram testemunho de uma fé verdadeira. Deus que também se entristece com a morte, nos garante a ressurreição e nos fortaleça nos passos vindouros.

O que os amigos podem fazer nesta hora, além de estar perto das famílias enlutadas?  Somente rezar? Sim, mas muito mais. Testemunhar  que a vida continua apesar dos seus  dramas, que temos a  fé para continuar a caminhada, que somos presença para acalentar a tristeza e que devemos viver melhor todos os dias.

 Conta uma lenda russa que um pai, que havia perdido esposa e filhos, sem saber o que fazer, começou a caminhar sem, também saber, onde iria parar. Chorava e continuava a sua jornada. Chorava e descansava e assim por semanas não parou sua estrada. Nem reparou que estava numa floresta e tinha aves, animais, rios, cachoeiras, uma natureza linda e cheia de paz. Mas como ele poderia ver, se somente chorava e se lamentava de sua sorte? A noite se colocava de bruços, improvisando seu travesseiro e nunca reparou no céu cheio de estrelas, a lua reluzente, os vagalumes que bailavam entre as árvores e nem mesmo nas feras ferozes que podiam dizimá-lo. Apiedado de si mesmo, lastimava a sorte o dia inteiro e continuava a andar a esmo pelo caminho desconhecido.

Foi então que viu na sua frente um ermitão que fez um gesto com a mão e o russo parou diante dele.

– Vejo que caminha pela floresta chorando o tempo inteiro, venha comigo.

O russo o seguiu, o ermitão fez com que ele sentasse ao lado de uma fogueira e ofereceu-lhe um chá. Conversaram muito e o homem que tinha perdido sua família contou-lhe toda a história. O ermitão ouviu-o por horas e finalmente falou:

 – Meu bom homem, olhe o céu cheio de estrelas. Ouça os anjos tocando balalaika. Está  ouvindo?

 – Não – disse o bom homem – nada escuto.

 O ermitão colocou suas mãos nos olhos do homem, nos ouvidos e na boca do pobre russo.Ele  ouviu então o som da balalaika, sentiu o perfume e olhou as estrelas. Aflorou até mesmo a  lembrança de seus ente-queridos, tão presentes em seu coração. Afinal, um dia ele teve uma  família para lembrar e saber que ela existiu. Por contraditório que possa ser, nosso coração  precisa de alguém por quem chorar. O homem fora feliz e essa felicidade jamais seria tirada  do seu coração. Jamais esqueceria que teve um lar, que tomou muito chá com a família, que  além de tudo tocavam balalaika. Agora estava ouvindo-os e sorriu.

 O ermitão nada mais disse e como apareceu, desapareceu. O russo resolveu voltar para sua  aldeia e no retorno, viu a bela floresta, seus animais, suas flores, plantas, suas estrelas acompanhando-o e seus entes queridos que se faziam presente na música  que ele somente ouvia.

No caminho ajoelhou e agradeceu a Deus:

– Perdão, Senhor, minha família está em meu coração o tempo todo e somente agora tomei consciência. Eles não estão mais na minha frente; estão dentro de mim.

Que estas famílias – na saudade infinita –  mantenham seus corações se nutrindo com suas lembranças. Que tenham a força da esperança, que ouçam velhas canções, toquem pequenas relíquias e reacendam sorrisos. Seus ente-queridos não partiram, mas continuam a iluminar sua jornada no mundo. Que as lembranças se tornem sentimentos de fé para continuarem sua jornada.

 

Pe. Antônio S. Bogaz (orionita), doutor em Filosofia, Liturgia e Sacramentos e

Teologia Sistemática – Cristologia

Prof. João H. Hansen, doutor em Literatura Portuguesa e

Ciência da Religião e Pós-doutor em antropologia