ADEUS ÀS QUINQUILHARIAS SAGRADAS
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As irmãs estavam diante de um baú com tantas coisas. Várias vezes já tinham aberto aquela caixa antiga, que chamavam carinhosamente de baú das relíquias. Tinha de tudo: brincos antigos, pequenas joias envelhecidas, cadernos escolares antiquíssimos, vestidos bonitos (muito antigos), presentes embalados e tantas coisas.
As irmãs estavam sofrendo e cada uma tinha renunciado à missão de despachar tantas coisas. Afinal, não se tratava de despachar tantas coisas, mas desfazer-se de tantas lembranças.
Luiza, mais destemida foi anunciando:
– Chegou a hora de limparmos o baú. Fazendo doações para entidades de caridade.
– Só de pensar, meu coração aperta, disse a Cida. As coisas têm valor, mas para vender em brechós, viram pechincha.
– E nem sei se vão mesmo para os pobres – falou a Luciana – se não ficarem no meio do caminho.
– Se a gente pensar assim, a gente nunca faz caridade. Tem gente muito correta pelo mundo afora, porque não acreditar?
A resposta rápida e convincente da Elisa foi a melhor argumentação. Saber que a doação poderia socorrer famílias mais pobres, foi o melhor convencimento.
Enquanto passava no rosto uma peça de roupa preferida da mãe, Elisa falou:
– Não me conformo com a morte dela. Parece que foi ontem.
Com voz embargada, como quem vai cair em prantos, Cida iniciou uma frase:
– Me recordo dela entrando no hospital. Ainda olhou para trás e… – mas não conseguiu finalizar. Todos mudaram o tom de voz, pois não queriam desmanchar-se em prantos.
– Se a gente começar a fazer o passado ficar presente, não caminhamos para a frente.
Quando a Luiza disse essa frase, Luciana interceptou e lamentou.
– Bem que gostaria de voltar no tempo. Tempo não volta, mas tempo constrói memórias.
Todos sabemos bem como é difícil despegar-se das coisas que constituíram nossa história, momentos felizes, acontecimentos fortes, eventos tristes. A gente não quer que o tempo passe.
Para segurar o tempo, procuramos não esvaziar os armários e vamos lotando as prateleiras de quinquilharias. Trazemos conchas do mar, porque não podemos carregar o mar conosco. Roubamos uma mudinha da floresta, como meio de trazer a floresta para casa. Roubamos souvenires das pessoas queridas, como uma forma de tê-las pertinho de nosso coração.
De repente, vemos nossos armários, prateleiras e dispensas abarrotadas de coisas meio inúteis. Dizem que um sinal de velhice é a incapacidade de jogar fora as coisas inúteis. Dizem também que este sintoma é mais comum nos homens.
Também, com certeza, é culpa de nosso hábito de comprar sem refletir, de comprar sem precisar, de comprar sem critérios. Depois ficamos com pena de desfazer-nos de nossos objetos, pois nos afeiçoamos a eles.
Passadas horas, as quatro irmãs ainda contemplavam as relíquias da Mãe Felipa. Não tinha decidido nada e o baú se escancarava diante delas, como uma caixa de doces, que todos adoram “lamber com a testa”, mas a dieta não permite degustar.
– Façamos assim, disse uma delas, acho que foi a Elisa. A gente se dispersa. Até o final do dia, cada uma vem aqui e pega uma lembrança, uma relíquia. Pode pegar mais. Depois, qualquer uma de nós fica livre para dar sumiço no baú.
– Relíquia verdadeira, é relíquia que se guarda no coração. Nosso baú mais verdadeiro, onde guardamos as mais lindas lembranças.
Não acompanhamos o final do enredo. Apenas na manhã do dia seguinte, nem mais sombras de um velho baú.
Pe. Antônio S. Bogaz (orionita), doutor em Filosofia, Liturgia e Sacramentos e
Teologia Sistemática – Cristologia
Prof. João H. Hansen, doutor em Literatura Portuguesa e
Ciência da Religião e Pós-doutor em antropologia